Páginas

domingo, 5 de novembro de 2023

Kant, e um fundamento chamado liberdade



              O pensamento de Kant em sua teoria ética é orientado por meio do conceito basilar da autonomia da vontade como o princípio supremo da moralidade: “Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual é para si mesma a sua lei (Independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simuladamente, no querer mesmo, como a lei universal” (KANT, 1980, p.144).  De acordo com Kant o sujeito se torna autônomo quando o mesmo compreende a necessidade de suas ações estarem em consonância com o imperativo categórico. Princípio que se coloca como um crivo que testa as ações, ou seja; um tribunal que julga se as ações realizadas são consistentes com a lei moral universal: “O imperativo categórico não se relaciona com a matéria da ação, isto é, com seu conteúdo, mas com a forma, com o princípio que fundamenta a vontade, e, por isso, este imperativo também pode ser denominado de o verdadeiro mandamento da moralidade” (KANT, 1980, p.126).

                Se a lei da moralidade existe de modo a priori, e se o mandamento nada mais é que a lei, podemos concluir que se um tal imperativo categórico de fato existe, sua forma não pode ser outra senão a seguinte: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1980, p.124). Em sentido kantiano, o indivíduo que faz uso de máximas que são contrárias a lei universal não é livre.  Em sua fundamentação Kant   apresenta a diferença entre dois tipos de liberdade em relação à vontade. Kant apresenta os conceitos de Willkür e Wille.  No entanto, segundo Allison, as utilizações de dois termos distintos são para caracterizar as funções de uma única faculdade:

 

Kant usa os termos Wille e Willkür para caracterizar respectivamente as funções legislativas e executivas de uma unificada faculdade de desejar, à qual ele, do mesmo modo, se refere como Wille. Portanto, Wille tem um significado amplo, no qual conota a faculdade de desejar ou a vontade como um todo, e um sentido restrito, em que há a conotação de uma função dessa faculdade[1]. (ALLISON, 1995, p.129)

 

               O conceito de Willkür é usado para descrever um indivíduo cuja ação é pautada na liberdade de escolha que se refere a um indivíduo que é portador de uma independência de ser determinado por uns impulsos sensíveis. Enquanto o conceito Wille é o conceito positivo de liberdade, ou seja; a capacidade pura da razão de ser por si só prática” (KANT, 2013, p. 174)[2]. Usemos o exemplo de Kant sobre ação de mentir, uma ação a qual tudo indica que Kant sempre a considera errada como exposto na obra Sobre um suposto Direito de Mentir por amor à Humanidade (1797). Com isso, a mentira quando testada pelo imperativo categórico viola a lei moral universal, pois contém uma contradição. Neste caso, o indivíduo ao mentir abre uma brecha subjetiva na lei moral. O que determina que a ação de mentir é errado, não é por que indivíduo não possa conceber um mundo em que esse princípio possa ser universalizado; é errado por que a universalização da ação de mentir além de ser autodestrutivo, é um comportamento inconsistente com a razão. E se o indivíduo agir dessa maneira, sua ação implica em um desprezo para com sua dignidade como um ser racional. Podemos colocar a mentira no contexto de Willkür, embora aquele que mente possa ter a liberdade de agir como achar melhor, e com isso age a partir de um princípio que não é racional.

             Partindo deste pensamento, podemos dizer que aquele que tem o livre arbítrio Willkür, pode agir por máximas. Mas ele não tem total liberdade no sentido de Wille, pelo fato de não ter a “capacidade pura da razão de ser por si só prática”.  O que podemos ver até aqui, é que a autonomia está relacionada com a capacidade que o indivíduo tem de participar do processo de deliberação, e assim agir de acordo com as máximas as quais não são contraditórias com a lei universal. Muitas vezes existem circunstâncias que estão fora do controle, e desempenham um papel significativo na determinação se é possível agir de forma autônoma na prática. Pensemos em um indivíduo, o qual vive em uma situação em que constantemente teme a morte súbita e violenta. Parece improvável que um indivíduo cuja sobrevivência seja ameaçada constantemente, seja capaz de agir pela razão, e não por instintos básicos em resposta a pressões externas.

             Sobre essa questão citada acima de uma situação de sobrevivência e ameaça constantemente, pensemos em uma seguinte situação para indivíduos que estão dentro do estado de natureza. Imaginemos que um indivíduo como diz Rousseau, cercou um pedaço de terra, e disse, isto é, meu, e começou a cultivar, plantar e colher. Um outro indivíduo viola este espaço, e subtrai parte da colheita do trabalho alheio. Como resolver tal questão? Sem a existência de um tribunal, a restituição dos bens pode entrar pelo caminho do poder, ou da força do mais forte, e impor uma posição que inibe e inviabiliza a parte mais fraca, e sujeitando ao indivíduo mais fraco ao mais forte. E essa forma de resolver os conflitos através do princípio do poder, pode fazer o certo ser errado”. (KANT, 2008, p. 36). A forma de resolver isso, é entrar em uma condição de autoridade que dá leis publicamente, e assegura o que é de cada um. (KANT, 2008, p. 07). Ou seja; a saída do Estado de natureza para a sociedade civil é a solução do conflito. No entanto, esta sociedade civil não cria direito, mas apenas cria leis que garante estes direitos. Pois, o direito já existe, o que não existe é o direito de fazer valer estes direitos, desta forma constitui o estado civil, em que simplesmente existem leis “para determinar para cada um o que é terra minha ou sua” (KANT, 2008, p. 07).

                Diante disso, temos algumas considerações. Primeiramente os indivíduos têm obrigações moral de agir autonomamente; segundo essa ação autônoma só é possível na pratica se a vida, saúde, segurança, liberdade e os bens do indivíduo forem garantidos; em terceiro o único mecanismo pelo qual se pode realizar essa segurança é a sociedade civil. De acordo com Kant a passagem para a sociedade civil é uma obrigação moral, e distingue sua posição de Thomas Hobbes, que argumenta que a razão pela qual um indivíduo deve deixar o estado de natureza e entrar na sociedade civil, é apenas o desejo do indivíduo de preservar sua vida.


 -------------------

ALLISON, Henry. Kant’s Theory of Freedom. New York: Cambridge University Press, 1990.

FRIEDMAN, Milton. Capitalism and Freedom. Chicago: University of Chicago Press.1962.

KANT, I. (FMC): Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo, Abril Cultural, 1980.

KANT, I. Metafísica dos Costumes. Trad. Célia Aparecida Martins/ Bruno Nadai; Diego Kosbiau e Monique Hulshof. Petrópolis: Vozes, 2013.

KANT, I.  Doutrina do direito. Tradução Edson Bini, 3. Ed. Edipro. São Paulo. 2005.

KANT, Immanuel. A Paz Perpetua. Trad: Artur Mourão. Covilhã. Texto Clássicos de filosofia. Universidade da Beira Interior. 2008.

KANT, Immanuel. The Metaphysics of Morals. In The Cambridge Edition of the Works of Immanuel Kant. Cambridge University,1999.

ROUSSEAU, J.J. Do contrato Social. Trad: Lourdes dos Santos Machado. São Paulo.Abaril Cultura. 1978.


 

 



[1] “Kant uses the terms Wille and Willkür to characterize respectively the legislative and executive functions of a unified faculty of volition, which he likewise refers to as Wille. Accordingly, Wille has both a broad sense in which it connotes the faculty of volition or will as a whole and a narrow sense in which it connotes one function of that faculty”. (Tradução nossa).

[2] “Pode-se também muito bem dizer: o ser humano está obrigado à virtude (como uma firmeza moral). Pois, embora a faculdade (facultas) da superação de todos os impulsos sensíveis contrapostos possa e tenha, graças à sua liberdade, de ser absolutamente pressuposta, essa faculdade, como firmeza (robur), é então algo que tem de ser adquirido, ao se elevar o móbil moral (a representação da lei) por meio da consideração (contemplatione) da dignidade da lei pura da razão em nós, ao mesmo tempo, porém, também por meio do exercício (exercitio)” (KANT, 2013, p. 174).