O pensamento de Kant em sua teoria ética é orientado por meio do
conceito basilar da autonomia da vontade
como o princípio supremo da moralidade: “Autonomia da vontade é aquela sua
propriedade graças à qual é para si mesma a sua lei (Independentemente da
natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não
escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas
simuladamente, no querer mesmo, como a lei universal” (KANT, 1980, p.144). De acordo com Kant o sujeito se torna
autônomo quando o mesmo compreende a necessidade de suas ações estarem em
consonância com o imperativo categórico. Princípio que se coloca como um crivo
que testa as ações, ou seja; um tribunal que julga se as ações realizadas são
consistentes com a lei moral universal: “O imperativo categórico não se
relaciona com a matéria da ação, isto é, com seu conteúdo, mas com a forma, com
o princípio que fundamenta a vontade, e, por isso, este imperativo também pode
ser denominado de o verdadeiro mandamento da moralidade” (KANT,
1980, p.126).
Se a lei da moralidade existe
de modo a priori, e se o mandamento
nada mais é que a lei, podemos concluir que se um tal imperativo categórico de
fato existe, sua forma não pode ser outra senão a seguinte: “Age apenas segundo
uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”
(KANT, 1980, p.124). Em sentido kantiano, o indivíduo que faz uso de máximas
que são contrárias a lei universal não é livre.
Em sua fundamentação Kant
apresenta a diferença entre dois tipos de liberdade em relação à
vontade. Kant apresenta os conceitos de Willkür
e Wille. No entanto, segundo Allison, as utilizações
de dois termos distintos são para caracterizar as funções de uma única
faculdade:
Kant
usa os termos Wille e Willkür para caracterizar respectivamente as funções
legislativas e executivas de uma unificada faculdade de desejar, à qual ele, do
mesmo modo, se refere como Wille. Portanto, Wille tem um
significado amplo, no qual conota a faculdade de desejar ou a vontade como um
todo, e um sentido restrito, em que há a conotação de uma função dessa
faculdade[1].
(ALLISON,
1995, p.129)
O conceito de Willkür é usado
para descrever um indivíduo cuja ação é pautada na liberdade de escolha que se
refere a um indivíduo que é portador de uma independência de ser determinado
por uns impulsos sensíveis. Enquanto o conceito Wille é o conceito positivo de liberdade, ou seja; a capacidade
pura da razão de ser por si só prática” (KANT, 2013, p. 174)[2].
Usemos o exemplo de Kant sobre ação de mentir, uma ação a qual tudo indica que
Kant sempre a considera errada como exposto na obra Sobre um suposto Direito de Mentir por amor à Humanidade (1797).
Com isso, a mentira quando testada pelo imperativo categórico viola a lei moral
universal, pois contém uma contradição. Neste caso, o indivíduo ao mentir abre
uma brecha subjetiva na lei moral. O que determina que a ação de mentir é
errado, não é por que indivíduo não possa conceber um mundo em que esse
princípio possa ser universalizado; é errado por que a universalização da ação
de mentir além de ser autodestrutivo, é um comportamento inconsistente com a
razão. E se o indivíduo agir dessa maneira, sua ação implica em um desprezo
para com sua dignidade como um ser racional. Podemos colocar a mentira no
contexto de Willkür, embora aquele
que mente possa ter a liberdade de agir como achar melhor, e com isso age a
partir de um princípio que não é racional.
Partindo deste pensamento, podemos dizer que aquele que tem o livre
arbítrio Willkür, pode agir por
máximas. Mas ele não tem total liberdade no sentido de Wille, pelo fato de não ter a “capacidade pura da razão de ser por
si só prática”. O que podemos ver até
aqui, é que a autonomia está relacionada com a capacidade que o indivíduo tem
de participar do processo de deliberação, e assim agir de acordo com as máximas
as quais não são contraditórias com a lei universal. Muitas vezes existem
circunstâncias que estão fora do controle, e desempenham um papel significativo
na determinação se é possível agir de forma autônoma na prática. Pensemos em um
indivíduo, o qual vive em uma situação em que constantemente teme a morte
súbita e violenta. Parece improvável que um indivíduo cuja sobrevivência seja
ameaçada constantemente, seja capaz de agir pela razão, e não por instintos
básicos em resposta a pressões externas.
Sobre essa questão citada acima de uma situação de sobrevivência e
ameaça constantemente, pensemos em uma seguinte situação para indivíduos que
estão dentro do estado de natureza. Imaginemos que um indivíduo como diz
Rousseau, cercou um pedaço de terra, e disse, isto é, meu, e começou a
cultivar, plantar e colher. Um outro indivíduo viola este espaço, e subtrai
parte da colheita do trabalho alheio. Como resolver tal questão? Sem a
existência de um tribunal, a restituição dos bens pode entrar pelo caminho do
poder, ou da força do mais forte, e impor uma posição que inibe e inviabiliza a
parte mais fraca, e sujeitando ao indivíduo mais fraco ao mais forte. E essa
forma de resolver os conflitos através do princípio do poder, pode fazer o
certo ser errado”. (KANT, 2008, p. 36). A forma de resolver isso, é entrar em
uma condição de autoridade que dá leis publicamente, e assegura o que é de cada
um. (KANT, 2008, p. 07). Ou seja; a saída do Estado de natureza para a
sociedade civil é a solução do conflito. No entanto, esta sociedade civil não
cria direito, mas apenas cria leis que garante estes direitos. Pois, o direito já
existe, o que não existe é o direito de fazer valer estes direitos, desta forma
constitui o estado civil, em que simplesmente existem leis “para determinar para cada um o que é terra
minha ou sua” (KANT, 2008, p. 07).
Diante disso, temos algumas
considerações. Primeiramente os indivíduos têm obrigações moral de agir
autonomamente; segundo essa ação autônoma só é possível na pratica se a vida,
saúde, segurança, liberdade e os bens do indivíduo forem garantidos; em
terceiro o único mecanismo pelo qual se pode realizar essa segurança é a sociedade
civil. De acordo com Kant a passagem para a sociedade civil é uma obrigação
moral, e distingue sua posição de Thomas Hobbes, que argumenta que a razão pela
qual um indivíduo deve deixar o estado de natureza e entrar na sociedade civil,
é apenas o desejo do indivíduo de preservar sua vida.
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ALLISON, Henry. Kant’s Theory of Freedom.
New York: Cambridge University Press, 1990.
FRIEDMAN, Milton. Capitalism and Freedom.
Chicago: University of Chicago Press.1962.
KANT, I. (FMC): Fundamentação da Metafísica
dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo, Abril Cultural, 1980.
KANT, I. Metafísica dos Costumes. Trad.
Célia Aparecida Martins/ Bruno Nadai; Diego Kosbiau e Monique Hulshof.
Petrópolis: Vozes, 2013.
KANT, I. Doutrina
do direito. Tradução Edson Bini, 3. Ed. Edipro. São Paulo. 2005.
KANT, Immanuel. A Paz Perpetua. Trad: Artur Mourão. Covilhã. Texto Clássicos de filosofia. Universidade da Beira Interior. 2008.
KANT, Immanuel. The Metaphysics of Morals. In The Cambridge Edition of the Works of Immanuel Kant. Cambridge University,1999.
ROUSSEAU, J.J. Do contrato Social. Trad: Lourdes dos Santos Machado. São Paulo.Abaril Cultura. 1978.
[1] “Kant uses the
terms Wille and Willkür to characterize respectively the
legislative and executive functions of a unified faculty of volition, which he
likewise refers to as Wille. Accordingly, Wille has both a broad
sense in which it connotes the faculty of volition or will as a whole and a
narrow sense in which it connotes one function of that faculty”. (Tradução
nossa).
[2] “Pode-se também muito bem dizer: o
ser humano está obrigado à virtude (como uma firmeza moral). Pois, embora a
faculdade (facultas) da superação de todos os impulsos sensíveis contrapostos
possa e tenha, graças à sua liberdade, de ser absolutamente pressuposta, essa
faculdade, como firmeza (robur), é então algo que tem de ser adquirido, ao se
elevar o móbil moral (a representação da lei) por meio da consideração
(contemplatione) da dignidade da lei pura da razão em nós, ao mesmo tempo,
porém, também por meio do exercício (exercitio)” (KANT, 2013, p. 174).