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terça-feira, 24 de maio de 2016

GALILEU E A CIÊNCIA MODERNA


1. GALILEU E A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA DO SÉCULO XVII

A obra de Galileu Galilei (1564-1642) está intimamente ligada à revolução científica do século XVII, talvez uma das mais profundas revoluções sofridas pelo espírito humano, que implicou uma mudança intelectual radical, cujo produto e expressão mais genuína foi o nascimento da ciência moderna.Dentro desse quadro, Galileu é universalmente considerado o fundador da física clássica, que passará a ser desenvolvida na direção de uma teoria físico-matemática dos fenômenos naturais. Suas contribuições substantivas para essa nova ciência, a saber, a descoberta da lei de queda dos corpos, a formulação da teoria do movi-mento uniformemente acelerado e a descoberta da trajetória parabólica dos projéteis, justificam plenamente o veredito. A contribuição de Galileu constitui-se, sem dúvida, na elaboração da primeira teoria cinemática que consegue descrever matematicamente o movimento dos corpos físicos (cf. GALILEI, 1988 [1638], Terceira e Quarta Jornadas). A constituição da cinemática será fundamental para o entendimento mais profundo do movimento e de seu papel nos eventos naturais, em suma, para o desenvolvimento e a consolidação da dinâmica. E Galileu não deixou de dar passos importantes nessa direção, com suas discussões sobre a extrusão causada pela rotação terrestre (cf. GALILEI, 2004 [1632], p. 214-44; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 6) ou com seu princípio único da teoria do movimento que contém implícita a idéia de conservação de energia (cf. GALILEI, 1988 [1638], p. 167-9; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 7) ou ainda com sua teoria dinâmica das marés (cf. GALILEI, 2004 [1632], Quarta Jorna-da; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 6; MARICONDA, 1999). Também é comum considerar Galileu um dos fundadores do método experimental, apesar da imensa oposição levantada por Koyré em sua influente e sedutora interpretação de um Galileu platônico, operando matematicamente a priori (cf. KOYRÉ, 1978a; 1978b)1 . Deste ponto de vista, não são apenas as realizações estrita-mente científicas que contam como contribuições de Galileu à posteridade, mas também sua maneira de conceber a ciência física, o método científico e, principalmente, a maneira pela qual chegou aos resultados científicos. Em resumo, o que caracteriza a atitude científica galileana - e também a atitude científica moderna - é a procura, na natureza, de regularidades matematicamente expressáveis, as chamadas leis da natureza, e o método de certificar-se de sua verdade através da realização de experimentos. O principal exemplo apresentado nesse sentido é a própria lei de que-da dos corpos que Galileu confirma por meio da realização de experimentos com o plano inclinado (cf. GALILEI, 1988 [1638], p. 175-6; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 2).Com o intuito de avaliar essas duas afirmações sobre o alcance da obra de Galileu, apresento, a seguir, algumas considerações no sentido de contextualizar historicamente as atribuições de fundação da física clássica e do método experimental, de modo a revelar o alcance intelectual e sócio-institucional da atividade científica do grande pisano.



 2. A ATITUDE ATIVA E OS INSTRUMENTOS CIENTÍFICOS

É comum caracterizar a revolução científica do século XVII como uma transformação completa da atitude fundamental do espírito humano. Essa transformação está expressa na oposição entre uma atitude ativa e uma atitude contemplativa: o homem moderno pro-cura dominar a natureza, tornar-se “dono e senhor da natureza”, enquanto o homem medieval visa apenas contemplá-la. Embora não se deva tomar tal caracterização em sentido absoluto, pois poderia conduzir, de um lado, a minimizar as realizações técnicas da Idade Média e, de outro, a maximizar a influência da técnica no desenvolvimento científico dos séculos XVI e XVII, não deixa de ser verdade que a filosofia, a ética e a religião modernas enfatizam a ação, a praxis, muito mais do que o faziam o pensamento antigo e medieval.A tendência a uma atitude ativa está particularmente exemplificada em Galileu por seu interesse no desenvolvimento de instrumentos científicos. Logo no início de sua carreira científica, no biênio 1586/87, esse interesse está presente na invenção da balança hidrostática (GALILEI, 1929; 1986). Trata-se, na verdade, de um instrumento destinado a resolver o problema prático de medição de uma grandeza física: o peso específico dos materiais, tal como definido pelo divino Arquimedes em seu tratado Dos corpos flutuantes2 . Essa preocupação com o aspecto prático da ciência mante-ve-se durante os treze anos seguintes; primeiro, numa direção emi-nentemente técnica com o compasso geométrico-militar e, a partir de 1609, em uma direção claramente científica com o telescópioDetenhamo-nos um pouco nesses dois instrumentos. O primei-ro é, sem dúvida, notável e característico da mentalidade ativa. Galileu inventou um compasso, que é também uma régua de cál-culo que permite cômputos rápidos e variados de distâncias, de profundidades, de altitudes, de espessuras de muralhas e resistên-cia de vigas, muros de arrimo e sustentação etc. O compasso, fabri-cado na oficina de Galileu em Pádua, era vendido, juntamente com um manual (para uso do instrumento) intitulado Le operazioni del compasso geometrico et militare (GALILEI, 1932 [1606]), publicado em Florença. Vender um instrumento com o respectivo manual de uso é certamente uma novidade, principalmente porque reflete uma atitude ativa e interessada na utilidade.

Quanto ao segundo instrumento, embora definitivamente Galileu não tenha sido o inventor do telescópio, foi, entretanto, o primeiro a aperfeiçoá-lo e utilizá-lo em observações astronômicas sistemáticas e contínuas, dando assim a um aparelho que despertava muita curiosidade na época e cujo valor militar foi imediatamente reconhecido (o próprio Galileu o venderá por essa utilidade à Sereníssima República de Veneza) uma aplicabilidade científica de inestimável valor para a astronomia e para a ciência em geral (cf. MARICONDA; VASCONCELOS, p. 71-4). É verdade que Galileu não enfrentou os problemas teóricos levantados pelo uso do teles-cópio; em particular, não se interessou pela teoria óptica que explicava o funcionamento do telescópio, embora essa teoria já se encontrasse, em parte, nas obras do italiano Giovanni Battista Della Porta, Magia naturalis de 1589 e De refractione de 1593,3 e, de modo completo, nas obras de Johannes Kepler, Ad Vitelionem paralipomena, de 1604, na qual apresenta uma explicação exata da propriedade das lentes, e Diottrica, de 1611, na qual Kepler expõe a teoria comleta do telescópio. Mas essa falta de interesse na teoria óptica não retira de Galileu todo o mérito, pois a necessidade de entender o funcionamento de um instrumento e a importância da teoria que explica a confiabilidade desse instrumento, nascem do uso efetivo e da utilidade demonstrada do instrumento. Galileu foi, certamente, quem mostrou a indiscutível utilidade científica do telescópio, realizando suas famosas observações astronômicas, anunciadas no Sidereus nuncius, de 1610 (GALILEI, 1930 [1610]; 1987 [1610]). Galileu realizou durante mais de vinte anos, do final de 1609 até a publica-ção do Diálogo, em 1632, vários conjuntos de observações telescópi-cas sistemáticas e contínuas, por exemplo, sobre as fases de Vênus, sobre os satélites de Júpiter, sobre os anéis de Saturno, sobre as manchas solares etc. Dentre esses conjuntos, as observações mais extraordinárias são aquelas sobre as manchas solares (cf. CLAVELIN, 1996, Cap. 4; MARICONDA, 2000, p. 83-5), acerca das quais Galileu publicaria, em 1613, o Istoria e dimostrazioni intorno alle macchie solari, obra na qual recolhe suas três cartas em resposta às visões tradicionalistas do jesuíta Scheiner (GALILEI, 1932 [1613]).

É inegável que a prática da observação telescópica contribuiu para abrir as portas ao conhecimento do sistema solar e do universo e, em outro plano, para o desenvolvimento de uma atitude de observação controlada e sistemática realizada por meio de e através de aparelhos, de aparatos instrumentais, desenhados especificamente para fins científicos. Com efeito, a pesquisa telescópica de Galileu não influiu apenas no domínio do macrocosmo, onde reconhecidamente abriu a possibilidade de uma nova cosmologia, mas desencadeou o início da pesquisa microscópica tanto na direção do aperfeiçoamento do aparelho, o microscópio, como no desenvolvi-mento do conhecimento observacional sobre o microcosmo. Não se trata, evidentemente, de dizer que Galileu tenha contribuído di-retamente para a microscopia, mas basicamente de assinalar o nas-cimento de um novo estilo científico que combina matemática e experiência ou, como no caso de Galileu, geometria e experimentos, ou numa formulação mais clara, opera com experiências construídas pela razão (cf. MARICONDA; VASCONCELOS, p. 42-52, p. 66-74).
Galileu investigou também os fenômenos térmicos, inventando um aparelho para a medida da temperatura. Contudo, não se pode dizer que tenha inventado o termômetro, pois seu aparelho apresentava muitos defeitos: o nível do líquido no tubo em que devia ser feita a leitura da temperatura dependia, na verdade, não apenas da temperatura procurada, mas também da pressão atmosférica externa. Apesar disso, a tentativa de Galileu é considerada como o embrião a partir do qual Torricelli, um dos últimos discípulos de Galileu, chegou à invenção do barômetro (cf. DIJKSTERHUIS, 1986, p. 359-64). Mesmo no final de sua vida, Galileu procurou construir, sem êxito, um relógio de pêndulo que fornecesse uma medi-da exata do tempo. Essas tentativas, apesar de mal sucedidas, mostram claramente a consciência que Galileu tinha da importância, para a física clássica, dos instrumentos de medida, isto é, de apare-lhos técnicos, de artefatos que permitissem observações e medições cada vez mais precisas. Pouco tempo depois, Christian Huygens resolveria o problema técnico (mecânico) de compensar com um novo impulso a perda de movimento do pêndulo em virtude da resistência do meio construindo o primeiro relógio de pêndulo (cf. DIJKSTERHUIS, 1986, p. 368-79).

Podemos concluir, portanto, que o empenho de Galileu na descoberta, aperfeiçoamento e uso de instrumentos de medida e de observação – que é uma marca característica (1) da aplicação do método experimental ao estudo dos fenômenos naturais e (2) da íntima relação entre ciência e técnica – esteve presente em toda sua carreira científica, e justifica, em grande parte, a afirmação de que ele é um dos fundadores do método experimental.


3. A UNIÃO ENTRE CIÊNCIA E TÉCNICA

Há outro aspecto de extrema relevância ligado à mudança de atitude característica da revolução científica dos séculos XVI e XVII. A atitude contemplativa estava assentada, em grande medida, na distinção estrita operada pelos gregos e mantida pelos medievais entre episteme (ciência) e techne (técnica). Segundo essa distinção, à episteme correspondia o mais elevado grau de conhecimento cer-to, necessário e demonstrável, ou seja, ciência apodítica ou ciência em sentido estrito, enquanto à techne correspondia o conhecimento prático, o saber fazer, as artes e as técnicas em geral.Por outro lado, essa separação entre ciência e técnica estava associada a uma hierarquia valorativa, segundo a qual o primeiro tipo de atividade era considerado nitidamente superior ao segundo. A completa independência entre os dois tipos de atividade aca-baria por tornar a ciência uma atividade basicamente teórica, isenta de preocupação e interesse com as conseqüências práticas e técnicas. Concebida desse modo, a ciência acabou por ser confundida com uma atividade que envolvia extensas controvérsias teóricas sobre a interpretação de textos tradicionais, principalmente dos textos aristotélicos. É nessa linha que se fixou, afinal de contas, desde o início da fundação das universidades, no século XII, a importância do auctor e a idéia da autoridade com seu sentido originário de que existem certos autores, as autoridades, que se sobressaem e predominam sobre os outros.

É natural que essa valoração da contemplação e a conseqüente separação entre a ciência e a prática estivessem profundamente enraizadas na organização institucional do conhecimento nos séculos XVI e XVII. De um lado, havia a tradição científica e filosófica que a Igreja mantinha e ensinava nas universidades; de outro lado, o ensino técnico que era desenvolvido independentemente da tradição das universidades, primeiro, durante a Idade Média, nas es-colas de artesãos e, depois, nas famosas escolas de artistas e nos arsenais do Renascimento e da primeira modernidade.

Na organização educacional universitária, a física aristotélica constituía a introdução sistemática à enciclopédia científica tradicional, pois considerava-se que era a única que podia oferecer ao conteúdo científico, em si mesmo fragmentário, unidade e coerência teórica. Por outro lado, a física aristotélica repousa sobre a metafísica, isto é, sobre o sistema de conceitos e de relações universais no qual a infinita variedade e a aparente acidentalidade da existência deixam transparecer uma profunda unidade teleológica de um cosmo (universo) bem ordenado, ou seja, a unidade do cosmo é teleológica porque a “ordem perfeita” do cosmo é uma finalidade que guia de modo determinado o curso dos acontecimentos naturais. A doutrina aristotélica, garantida pela autoridade dos séculos, consagrada por sua união à teologia católica e devido a sua conclusiva organicidade de princípios, permanecia como o fundamento sólido de toda educação teórica nas universidades, como o critério indiscutível de verdade para o mundo dos doutos, e seu autor, Aristóteles, como a autoridade inconteste nas ciências (cf. MARICONDA, 2000).
Pode-se então entender que durante a polêmica sobre a com-patibilidade de Copérnico com a Bíblia, ocorrida entre 1613-1616 (primeiro processo) e do qual resultou a condenação de Copérnico (cf. GALILEI, 1932 [1613-1616]; NASCIMENTO, 1988; MARICONDA, 2000), a crítica de Galileu à autoridade e à tradição, em particular a de Aristóteles, fosse também uma luta institucional que acabaria colocando contra ele os filósofos das universidades e toda a estrutura universitária tradicional. Como professor de ma-temática na universidade, Galileu estava obrigado a ensinar a geo-metria de Euclides e a astronomia de Ptolomeu; como físico, devia ser filósofo natural, ou seja, estava limitado à exegese e interpretação filosóficas da física aristotélica. Em outros termos: não havia lugar no currículo universitário da primeira metade do século XVII para as investigações mecânicas, consideradas, do ponto de vista da distinção acima, como investigações eminentemente técnicas, e não científicas, possuidoras, portanto, de um valor secundário (cf. GALILEI, 2004 [1632]; MARICONDA, 2000).
Mas há um sentido claro em que a ciência de Galileu difere da simples techne em sentido aristotélico. A ciência de Galileu - a ciência moderna - não separa mais episteme e techne, ciência e técnica, mas é antes uma ciência útil, no sentido não apenas de ter conseqüências práticas, isto é, de incluir um tratamento matemático de muitos problemas físicos de caráter prático, mas também de poder ser controlada, testada e avaliada por essas conseqüências práticas.
Para apreciar a dimensão técnica da obra científica de Galileu é preciso considerar o desenvolvimento de seu trabalho científico no período paduano (1597-1610) e anterior, portanto, à descoberta do telescópio e à longa fase dedicada à astronomia e à defesa do movimento da Terra. Percebe-se, então, que a ciência de Galileu é ciência útil desde o início, muito antes do copernicanismo ocupar totalmente a agenda científica de Galileu. Com efeito, logo no início de sua carreira, Galileu desenvolveu pesquisas mecânicas em duas direções: (1) atenção para aspectos da estática no sentido de uma teoria da resistência dos materiais; (2) estudos dos elementos e composição das máquinas. Essas direções de pesquisa estão claramente presentes nos dois tratados militares – Breve instruzione all’architettura militare (GALILEI, 1932a); e Trattato di fortificazione (GALILEI, 1932b) –, cujo objetivo indisfarçável é mostrar a aplicabilidade técnica da nova ciência, e no pequeno tratado ma-nuscrito intitulado Le mecaniche (GALILEI, 1932c), que alcançou grande difusão, chegando a ser publicado em tradução francesa por Mersenne, em 1634.

Ora, o que acontece aqui é o nascimento de uma concepção de ciência que está aliada a uma nova concepção da racionalidade científica para a qual há uma estreita relação entre o trabalho científico e o trabalho técnico.5 Grande parte das transformações que se produziram na mentalidade científica, em particular, na física do século XVII, originou-se das sempre novas exigências e das questões cada vez mais precisas levantadas pelos técnicos. O que os técnicos procuram é saber com exatidão como se comportam certos fenômenos particulares, de modo que possamos saber como agir quando nos confrontamos com esses fenômenos. É por isso que, para os técnicos, como para Galileu, as discussões dos físicos aristotélicos acerca das causas dos fenômenos naturais e as especulações dos filósofos das universidades acerca da essência última da Natureza parecerão desprovidas de interesse e significação.

Essa aliança entre a ciência e a técnica, que tem em Galileu um de seus primeiros defensores, conduziu obviamente a uma radical transformação da problemática científica, a uma caracterização inteiramente nova das próprias pesquisas científicas e de seus objetivos, a um novo estilo de sistematização e exposição. Contudo, não se deve pensar que essa transformação consistiu em afastar da ciência todas as argumentações teóricas. Foram afastadas apenas aquelas investigações teóricas que, por sua generalidade, por seu caráter excessivamente abstrato e especulativo, fogem a qualquer possibilidade de controle, mantendo-se apenas com base na autoridade conferida pela tradição. Na nova concepção de ciência, serão deixadas de lado as especulações desprovidas de relação com a experiência, abrindo espaço para aquelas considerações teóricas (1) que podem conduzir à formulação de leis naturais, ao estabelecimento de previsões, à estipulação de regras práticas visando à ação e (2) que podem ser controladas pela experiência e pelas conseqüências práticas. Isso significa que a ciência, ao enfrentar os problemas levantados pela técnica, não realiza apenas uma função prática, mas preenche também uma função teórica de justificação racional de certas práticas técnicas, de certos modos especializados de fazer. Dito de outro modo, as reflexões e os raciocínios práticos dos técnicos viriam a ser justificados pelas especulações da ciência natural nascente. Cada vez mais a especulação científica se funda-mentaria nas próprias atividades práticas, abrindo assim a possibilidade de que as teorias científicas fossem julgadas não só pelo seu valor teórico, mas também pelo aporte que fornecem à solução de problemas técnicos.Dois exemplos marcantes dessa relação entre a teoria e a práti-ca, característica da união entre ciência e técnica, encontram-se justamente na grande obra final de Galileu, Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (GALILEI, 1933 [1638]; 1988 [1638]), que retoma as direções iniciais da pesquisa mecânica dan-do-lhe agora uma cinemática física (uma descrição matemática do movimento dos corpos físicos). Assim, tanto a Segunda Jornada, na qual Galileu apresenta a primeira nova ciência que trata da resistência dos materiais, como na Quarta Jornada, na qual desenvol-e uma parte importante da segunda nova ciência, a saber, a teoria do movimento dos projéteis, é evidente a união entre a teoria e a prática. A primeira nova ciência é notável nesse aspecto. Nela, Galileu introduz considerações sobre o “efeito-escala”, que se mostram básicas para esse tipo de estudo abrindo a possibilidade dos testes de laboratório com protótipos menores que os originais. É possível. a partir do conhecimento fornecido pela ciência da resistência dos materiais, projetar grandes estruturas com cálculo pré-vio dos esforços e pontos de ruptura, do tipo de material a ser utilizado em vista do esforço exigido etc. O aporte prático da primeira nova ciência de Galileu é, portanto, decisivo. Galileu está não apenas fundando uma nova ciência, uma nova teoria sobre a resistência dos materiais, mas definindo os contornos de um novo tipo de atividade profissional, a engenharia civil. Não é menor o aporte prático da teoria do movimento dos projéteis da Quarta Jornada, da qual Galileu tinha razão em se orgulhar, pois a teoria dos projé-teis desenvolvida nela permite informar a prática dos artilheiros que podem, a partir de então, produzir “tiros científicos”, isto é, planejar de antemão o uso da artilharia (cf. MARICONDA; VAS-CONCELOS, p. 239-42). A introdução nas práticas científicas do método experimental favoreceu a consolidação dessa união entre a ciência e a técnica, pois gerou um ciclo entre a teoria, o instrumento e o experimento; ciclo que pode ser esquematicamente representado como segue: Esse ciclo, que está claramente presente na obra de Galileu, revelou-se especialmente apropriado para promover a união entre ciência e técnica, a qual permitiu, a longo termo, que a ciência permeasse todo o mundo no qual vivemos, fazendo com que nossa civilização seja essencialmente uma civilização técnico-científica.


4. MATEMATIZAÇÃO DA NATUREZA E MECANIZAÇÃO

DO MUNDO

Um terceiro aspecto de impacto significativo sobre o conjunto organizado da cultura e que é, ao mesmo tempo, a expressão cabal da profunda modificação nas concepções de natureza, de ciência e da capacidade humana (realizada por autores como Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes) é esses autores terem promovido de modo estreitamente vinculado a matematização e a mecanização da natureza.Convém, neste ponto, deter-se mais sobre o alcance da trans-formação suscitada pela simples idéia do movimento da Terra para aprofundar a compreensão do vínculo entre a matematização da natureza e a concepção de Copérnico de que a Terra é um planeta que, como todos os demais, gira em torno do Sol. Dois aspectos são responsáveis pela fascinação e também pela reação e resistência produzidas pelo sistema heliocêntrico de Copérnico. O primeiro diz respeito ao elemento nevrálgico e essencial da história do pensamento sobre o qual age a chamada revolução copernicana. O segundo refere-se a uma espécie de forma pura, como que invariante, que permite caracterizar o copernicanismo como um tipo específico de postura científica e filosófica.

Com efeito, até Copérnico, pode-se dizer que as próprias cate-gorias do pensamento estão organizadas em torno da afirmação de nossa posição central no Universo, de modo que a concepção geocêntrica faz parte do núcleo da concepção antropocêntrica da cultura. Percebemos, por razões ligadas, em parte, à estrutura de nossa percepção, em parte a nossa evolução antropológica, que a Terra está imóvel no centro do lugar de nossa percepção, ou seja, a imobilidade da Terra assenta-se sobre um conceito de observador ou de sujeito perceptivo ligado ao seu lugar central que se confun-de com aquilo que sua percepção lhe informa. Há, portanto, uma unidade entre o geocentrismo e a fenomenologia do sensível es-pontaneamente praticada por nós. No universo ptolomaico, o lu-gar central do observador terrestre imóvel é a lei daquilo que é. A organização do real fenomênico é o efeito da percepção de um ob-servador e depende de seu lugar, mas sua auto-percepção perma-nece imediata. Isto significa que, embora também aqui haja, de cer-to modo, uma aparência constituída, ela, entretanto, constitui-se a partir do próprio ser e de suas categorias. Em suma, a aparência, para Aristóteles, é constituída a partir de categorias que são como uma sintaxe do próprio ser das coisas e não dependem da maneira pela qual podemos conhecer essas coisas. Entende-se, assim, que a tese copernicana do movimento da Terra, ao descentralizar o ob-servador e colocá-lo em movimento, terá um impacto de funda-mental importância sobre o conjunto especificamente organizado da cultura, opondo-se diretamente ao conjunto do saber, da ciên-cia, da religião e da opinião comum. No plano científico, com Copérnico, o movimento do observador passa a ter uma função radical ou primitiva, de modo que “salvar as aparências” quer di-zer agora restaurar sob as aparências os princípios da física que as explicam e que, portanto, tornam possíveis essas aparências. Em suma, na astronomia de Copérnico existe uma pretensão de expli-cação que invade o terreno que a tradição havia reservado à filoso-fia natural (cf. MARICONDA, 2000, p. 92-6; MARICONDA; VAS-CONCELOS, Cap. 3).
Essa pretensão de explicação consiste basicamente em afirmar que o conjunto de observações astronômicas deve ser explicado em termos das leis, da ordem, da estrutura e da interação subjacentes aos fenômenos relatados por essas observações, que são assim to-madas como efeitos aparentes de causas subjacentes inobserváveis (cf. MARICONDA; LACEY, 2001). Ela se encontra claramente pre-sente nos dois grandes copernicanos, Kepler e Galileu. No caso deste último, pode-se apreciar esse aspecto na explicação das marés de-senvolvida na Quarta Jornada do Diálogo sobre os dois máximos siste-mas, segundo a qual as marés são causadas pela combinação do duplo movimento de rotação e translação da Terra, sendo assim o efeito visível de causas inobserváveis para o observador terrestre (GALILEI, 2004 [1632]; MARICONDA, 1999; MARICONDA; VAS-CONCELOS, 2006, p. 166-83).
Do ponto de vista do desenvolvimento da mecânica, todos os autores importantes do século XVII, tais como Kepler, Galileu, Descartes, Mersenne, perceberam a necessidade de unificar a astrono-mia heliocêntrica de Copérnico com as concepções mecânicas da nova ciência. Para todos esses autores, a adesão ao sistema copernicano se insere no quadro intelectual da crítica moderna, fei-ta em nome da razão, à astronomia e à cosmologia tradicionais, que separavam essencialmente Céu e Terra, atribuindo aos corpos celestes os movimentos circulares considerados perfeitos (comple-tos) e às coisas terrestres os movimentos retilíneos considerados imperfeitos (incompletos). Além disso, a concepção tradicional se-parava a astronomia, entendida como simples hipótese e descrição matemática dos movimentos observados dos corpos celestes, e a física (filosofia natural), entendida como o estudo das causas e essências das mudanças e transformações que vemos acontecer a nossa volta. Com a adesão ao copernicanismo, Galileu e Kepler são levados a criticar essa visão tradicional de que o universo está com-posto por duas regiões heterogêneas (essencialmente diferentes) e, de certo modo, a superá-la dando um importante passo na direção da homogeneização do universo, isto é, da concepção de que todas as regiões do universo estão sujeitas às mesmas leis (GALILEI, 2004 [1632], Primeira Jornada; MARICONDA, 2005).

Quando se compara a pesquisa astronômica, de Kepler, com a pesquisa mecânica, de Galileu, pode-se perceber uma profunda semelhança entre elas: ambas revelam um claro direcionamento metódico na procura por regularidades matemáticamente formuláveis observadas nos fenômenos naturais. A procura por leis da natureza, por regularidades existentes entre os fenômenos na-turais observados é a marca da ciência moderna. A formulação des-sas leis, isto é, de enunciados precisos e verificáveis pela experiên-cia, expressos em linguagem matemática, acerca das relações uni-versais que existem entre os fenômenos particulares, passa a ser um dos objetivos centrais da pesquisa científica.

Assim, tanto o programa mecânico de Galileu como o progra-ma astronômico de Kepler se inserem no quadro da constituição de uma ciência física que procura formular as leis universais e ma-temáticas do movimento, visando à unificação da astronomia, ou a teoria dos movimentos planetários, com a mecânica, ou a teoria dos movimentos locais ou terrestres, e lançando as bases sobre as quais Newton construirá a dinâmica, ou seja, a explicação de por que os corpos se movem do modo como vemos que se movem (GALILEI, 2005 [1624]; MARICONDA, 2005).

Mas há outra dimensão do programa mecânico de Galileu que convém ressaltar justamente porque corresponde às repercussões das novas ciências de Galileu para além do campo estritamente científico em direção à visão moderna da natureza concebida como um mecanismo regido por leis matemáticas. Adentramos, agora, no núcleo da concepção mecanicista que dá sustentação à matematização da natureza. Com efeito, esses dois processos – matematização e mecanização da natureza – estão interligados em Galileu, como se depreende do estabelecimento, em Il saggiatori, das condições epistemológicas efetivas para a aplicação da mate-mática à experiência com a formulação da distinção entre qualidades primárias – forma, figura, número, movimento e contato – e qualidades secundárias – cor, odor, sabor, som (GALILEI, 1933 [1623], p. 347-52; 1973 [1623], p 217-20). Estas últimas qualidades, segundo Galileu, não residem no corpo observado, mas no observador; como só possuem uma existência assegurada pela subjetividade perceptiva, são apenas “nomes” para sentimentos ou afecções sentidas pelo sujeito da percepção. Por outro lado, as qualidades primárias que não podem ser eliminadas, pois participam necessariamente do conceito de corpo físico, existem nele como elemento racional passível de tratamento matemático.A distinção entre qualidades primárias e secundárias, inaugurada por Galileu, propõe, de modo claro, a eliminação das qualidades subjetivas e reduz a natureza a termos quantitativos, isto é, passíveis de tratamento matemático e de determinação experimental. A redução drástica do variegado feixe de qualidades sensíveis àquelas que podem receber tratamento matemático é representa-tiva não só da assimilação do espaço físico qualitativamente diferenciado ao espaço geométrico homogêneo, assimilação que ex-pressa emblematicamente a perspectiva da matematização da natureza, mas se constitui, sobretudo, como a circunscrição da base ontológica indispensável para proceder à mecanização da concepção da natureza e do mundo (cf. MARICONDA; VASCON-CELOS, 2006, p. 108-14).



5. A AUTONOMIA DA CIÊNCIA E A UNIVERSALIDADE DO MÉTODO CIENTÍFICO

Há, finalmente, uma quarta consideração historicamente im-portante que também se liga à firme adesão de Galileu ao heliocentrismo e que diz respeito ao que é conhecido como o caso Galileu, isto é, aos episódios de condenação de Copérnico, em 1616 (GALILEI, 1932 [1613-1616]; NASCIMENTO, 1988; MARICONDA, 2000) e de Galileu, em 1633, pela Inquisição romana (FAVARO, 1938; PAGANI; LUCIANI, 1994). Neste aspecto, a defesa galileana da cosmologia copernicana adquire um maior alcance cultural que ultrapassa as fronteiras do campo científico, adquirindo uma dimensão intelectual efetiva.Vista sob este ângulo, o principal significado da adesão galileana ao copernicanismo está na sua rejeição explícita do critério de autoridade – seja da autoridade de Aristóteles, seja da autoridade das Sagradas Escrituras – como critério de verdade nas questões científicas e sua conseqüente defesa da liberdade de pesquisa científica. Essa defesa da liberdade de pesquisa científica, que pode ser resumida na afirmação de Galileu de que a verdade das concepções científicas – em particular, a verdade da teoria de Copérnico – deve ser decidida por experiências sensíveis e demonstrações necessárias, corresponde, em grande medida, a um programa político co-cultural que, partindo de uma cuidadosa separação dos domínios da teologia e da ciência, tinha um duplo objetivo (GEYMONAT, 1984). Em primeiro lugar, procurava afastar a objeção de que o sistema copernicano – principalmente no que diz respeito a suas teses da centralidade do Sol e da mobilidade da Terra – era contrário às Sagradas Escrituras, a qual o colocava, do ponto de vista da ortodoxia teológica (estabelecida pelo Concílio de Trento), sob a grave suspeita de heresia. E, em segundo lugar, tinha a clara intenção de evitar que a Igreja se opusesse ao progresso da nova ciência alinhando-se com seus opositores tradicionalistas, que impediam a difusão das novas idéias nas universidades, obstruindo assim a organização comunitária e a institucionalização das novas disciplinas científicas. Digamos que Galileu pretendia que é possível ser um bom católico e, ao mesmo tempo, ser copernicano. É possível acreditar em Deus, seguir a Bíblia e, mesmo assim, provar que a Terra se move. A resposta de Galileu ao problema da suposta incompatibilidade entre a teoria de Copérnico e a Bíblia consiste, pois, em considerar primeiramente que, nos assuntos naturais, não pode ser atribuída às Escrituras uma autoridade superior àquela da própria natureza (GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 283; 1988, p. 19). Como, além disso, a ciência matemática da natureza possui um método independente (autônomo) de aferir a verdade e de chegar a deciões racionais nas polêmicas acerca de questões naturais, ela não precisa apoiar-se em nenhuma autoridade exterior a sua própria esfera de competência. A autonomia da ciência está, assim, assentada numa tese de suficiência do método científico para aferir a verdade das teorias naturais mediante um escrutíneo crítico baseado em “experiências sensíveis” e “demonstrações necessárias”, es-tas últimas identificadas por Galileu com o raciocínio demonstrativo matemático (cf. GALILEI, 2003; MARICONDA, 2003, p. 70-3). Este é o lugar para lembrar que os pronunciamentos metodológicos de Galileu coincidem em reiterar que o método científico consiste numa combinação peculiar de experiência com raciocínio matemático. Em geral, entretanto, eles não vão além da afirmação de que o método científico está composto por experiências sensíveis e demonstrações necessárias. No Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, por exemplo, o papel das experiências sensíveis está articulado em torno do que Galileu considera como o princípio empirista de Aristóteles, segundo o qual “a experiência sensível deve ser anteposta a qualquer discurso fabricado pelo engenho humano” (GALILEI, 2004 [1632], p. 113, p. 131-2, nota 39). Esse mesmo tipo de consideração reaparece, muitos anos mais tar-de, em uma carta de 1640, na qual o aspecto crítico do princípio empirista, tal como interpretado por Galileu, é ressaltado, pois “antepor a experiência a qualquer discurso” é um preceito “há muito tempo anteposto ao valor e à força da autoridade de todos os homens do mundo, à qual V. Sa. mesma admite que não só não devemos ceder à autoridade dos outros, mas devemos negá-la a nós mesmos, toda vez que encontramos que o sentido nos mostra o contrário” (GALILEI, 2003, p. 76). Fica evidente que a parte do método referente às experiências sensíveis, expressa pelo princípio de “ante-por a experiência a todo discurso”, serve de antídoto para o recurso à autoridade. É o escrutíneo crítico pela experiência que torna o mé-todo científico livre de toda e qualquer autoridade, até mesmo da-quela do autor do discurso (cf. MARICONDA, 2003, p. 71-3). Convém, entretanto, ter claro que Galileu não reivindica qual-quer inovação no método da ciência, ou antes, nunca reivindica anterioridade ou precedência em questões metodológicas. As questões de precedência em que Galileu se envolveu são todas propriamente científicas: ou observacionais ou de conteúdo conceitual de teses teóricas que envolvem a análise matemática da experiência, como, por exemplo, a determinação da trajetória parabólica dos projéteis. Nesse sentido, Galileu não pretende reformar o Organon, como o faz Francis Bacon, nem dar ao método um domínio próprio e um tratamento sistemático, propondo-o como propedêutica ao conhecimento científico, como o fará Descartes. O que Galileu faz é reivindicar a suficiência do método científico para decidir acerca das questões naturais, para as quais se pode usar a experiência, o discurso e o intelecto, em suma, para as quais se pode empregar a razão natural (GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 284; 1988, p. 20).

Por fim, dado que a natureza prevalece sobre a Escritura, pois nem tudo que está escrito nesta última “está ligado a obrigações tão severas como cada efeito da natureza” (GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 283; 1988, p. 19), e dado que a ciência emprega um método autônomo para aferir a verdade das concepções naturais, que é também o único método acessível à capacidade humana, as conclusões naturais devem não só prevalecer sobre a letra da Escritura, mas também servir de base para a determinação de seu verdadeiro senti-do. Ou seja, como diz Galileu: “[...] é ofício dos sábios expositores afadigar-se para encontrar os verdadeiros sentidos das passagens sacras concordantes com aquelas conclusões naturais das quais primeiramente o sentido manifesto ou as demonstrações necessárias tornaram-nos certos e seguros” (GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 283; 1988, p. 19-20). Desse modo, Galileu associa à suficiência do método científico a afirmação da universalidade do juízo científico.

A polêmica teológico-cosmológica, desenvolvida entre 1613 e 1616, transcende claramente o nível interno do campo científico para apresentar aspectos externos de cunho intelectual e político. Nesse sentido, a defesa do copernicanismo não é apenas uma questão de preferência teórica, a ser julgada com base em padrões estritamente científicos, pelo sistema copernicano em detrimento do sistema ptolomaico ou do sistema de Tycho Brahe, mas é fundamentalmente uma polêmica que envolve a transformação mesma dos padrões de juízo científico e uma nova circunscrição do campo científico. Ambos os aspectos conduzem inevitavelmente a uma atu-ação no domínio mais amplo da cultura e da organização institucional das disciplinas e “carreiras profissionais” nas universidades da época. Assim, Galileu defende não só que a ciência possui um método suficiente que torna os seus juízos independentes (livres) do princípio da autoridade teológica, mas também afirma incisivamente, como é de se esperar no caso da defesa de autonomia de um campo ou disciplina científicos, a universalidade do seu juízo, pois os intérpretes da Bíblia devem procurar adequar seus comentários às verdades estabelecidas pela ciência ou ainda abster-se de produzir juízos sobre assuntos que podem vir a ser contraditos pelo conhecimento obtido pela razão natural.
Após um penoso julgamento, Galileu foi obrigado, pela Inquisição Romana, em 1633, a abjurar sua defesa do sistema copernicano, vitimado não só pela intriga de seus opositores, mas principalmente pela firme disposição da Contra-reforma em manter a ortodoxia teológica católica contra, de um lado, as igrejas nascidas com a Reforma e, de outro, contra toda forma suspeita de heterodoxia das forças progressistas e leigas da nova ciência. A condenação de Galileu significou obviamente a falência da parte político-institucional do ambicioso programa galileano, mas não retirou dele seu profundo alcance cultural, que se expressa na clara consciência da independência dos padrões de julgamento das realizações científicas com relação aos padrões teológicos impostos pelas instituições eclesiásticas e com relação aos padrões valorativos baseados na autoridade de Aristóteles e defendidos pela tradição das universidades. Cabe, portanto, a Galileu também o mérito de ter percebido com admirável clareza que a independência dos padrões científicos de julgamento e a conseqüente liberdade de pesquisa científica eram fundamentais para a formação de comunidades científicas e para o processo de institucionalização através dos quais a nova ciência se consolidaria nos Estados Modernos durante os séculos XVII e XVIII. A ciência moderna nasce e prospera sobre as ruínas do autoritarismo e só passará a integrar os currículos universitários no século XVIII, principalmente depois da Revolução Francesa.



6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As quatro características, que se mostrou estarem presentes na obra de Galileu, revelam que a imagem comum do pisano como fundador da física clássica e do método experimental é bastante adequada, exceto por atribuir ao indivíduo mais do que ele pode efetivamente fazer, porque, com efeito, a criação da física clássica e a invenção do método experimental são processos histórico-sociais que dependem do concurso dos humanos. São, nesse sentido, coletivos, pois dependem, para efetivar-se, de colaboração e organização. Ainda assim, Galileu, como homem de sua época, é daquela estirpe de indivíduos que personifica um certo ethos, um certo conjunto de práticas e procedimentos, conjunto esse, em seu caso, definidor de um estilo científico característico da primeira modernidade (cf. MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, p. 210-6). É inegável que, com Galileu, nasce uma nova figura no cenário intelectual e cultural, a figura do cientista (cf. MARICONDA, 1989; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, 14-19); ou, melhor dito, nasce, nos séculos XVI e XVII, uma nova atividade intelectual, a científica, da qual Galileu é, sem dúvida, um dos mais expressivos representantes.




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