Historicamente,
três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais de cientificidade:
o racionalista, cujo modelo de objetividade é a matemática; o mpirista, que
toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história natural do século
XVII; e o construtivista, cujo modelo de objetividade advém daidéia de razão
como conhecimento aproximativo. A concepção racionalista – que se este nde dos
gregos até o final do século XVII – afirma que a ciência é um conhecimento
racional dedutivo e demonstrativo como a matemática, portanto, capaz de provar
a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados, sem deixar
qualquer dúvida possível. Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas, postulados
e definições, que determinam a natureza e as propriedades de seu objeto, e de
demonstrações, que provam as relações de causalidade que regem o objeto
investigado. O objeto científico é uma representação intelectual universal,
necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria
realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma. As experiências
científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações
teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido
exclusivamente pelo pensamento. O objeto científico é matemático, porque a
realidade possui uma estrutura matemática, ou como disse Galileu, “o grande
livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos”.
A
concepção empirista – que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século
XIX – afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações
e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao serem completadas,
oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento.
A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a
experiência não tem simplesmente o papel de verificar e confirmar conceitos,
mas tem a função de produzi-los. Eis por que, nesta concepção, sempre houve
grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos, pois deles
dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada. Essas
duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora o realizassem
de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era uma
explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é
em si mesma. A ciência era uma espécie de raio-X da realidade. A concepção racionalista
era hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e disso deduzia
propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção empirista era hipotético-indutiva,
isto é, apresentava suposições sobre o objeto, realizava observações e
experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas leis, suas
Propriedades,
seus efeitos posteriores e previsões. A concepção construtivista – iniciada no
século passado – considera a ciência uma construção e modelos explicativos para a realidade e não
uma representação da própria realidade.
O
cientista combina dois procedimentos – um, vindo do racionalismo, e outro,
vindo do empirismo – e a eles acrescenta um terceiro, vindo da idéia de
conhecimento aproximativo e corrigível. Como o racionalista, o cientista construtivista
exige que o método lhe permita e lhe garanta estabelecer axiomas, postulados,
definições e deduções sobre o objeto científico. Como o empirista, o
construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas, postulados,
definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma
construção lógico-intelectual e uma construção
experimental
feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a
realidade em si mesma, mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da
realidade, explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto, apresentar
uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida,
modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as
exigências de seu ideal de cientificidade:
1.
que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que
orientam
a teoria;
2.
que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos
com
base na observação e na experimentação;
3.
que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos, mas
também
alterar os próprios princípios da teoria, corrigindo-a.
Diferenças
entre a ciência antiga e a moderna: Quando apresentamos os ideais de
cientificidade, dissemos que tanto o ideal racionalista quanto o empirista se
iniciaram com os gregos. Isso, porém, não significa que a concepção antiga e a
moderna (século XVII) de ciência sejam idênticas. Tomemos um exemplo que nos
ajude a perceber algumas das diferenças entre antigos e modernos. Aristóteles
escreveu uma Física. O objeto físico ou natural, diz Aristóteles, possui duas
características principais: em primeiro lugar, existe e opera independentemente
da presença, da vontade e da ação humanas; em segundo lugar, é um ser em
movimento, isto é, em devir, sofrendo alterações qualitativas, quantitativas e
locais; nasce, vive e morre ou desaparece. A Física estuda, portanto, os seres
naturais submetidos à mudança. O mundo, escreve Aristóteles, divide-se em duas
grandes regiões naturais, cuja diferença é dada pelo tipo de substância, de
matéria e de forma dos seres de cada uma delas. A região celeste, formada de
Sete Céus ou Sete Esferas, onde estão os astros, tem como substância o éter,
matéria sutil e diáfana, forma universal que não sofre mudanças qualitativas
nem quantitativas, mas apenas a mudança ou movimento local, realizando
eternamente o mais perfeito dos movimentos, o circular. A segunda região é a
sublunar ou terrestre - nosso mundo -, constituída por quatro substâncias ou
elementos – terra, água, ar e fogo -, de cujas combinações surgem todos os
seres. São substâncias fortemente materiais e,
portanto
(como vimos no estudo da metafísica aristotélica), fortemente potenciais ou
virtuais, transformando-se sem cessar. A região sublunar é o mundo das mudanças
de forma, ou da passagem contínua de uma forma a outra, para atualizar o que
está em potência na matéria.
Os
seres físicos não se movem da mesma maneira (não se transformam nem se deslocam
da mesma maneira). Seus movimentos e mudanças dependem da qualidade de suas
matérias e da quantidade em que cada um dos quatro elementos materiais existe
combinado com os outros num corpo. Deixemos de lado todas as modalidades de
movimentos estudadas por Aristóteles e examinemos apenas uma: o movimento local.
Os corpos, diz o filósofo, procuram atualizar suas potências materiais,
atualizando-se em formas diferentes. Cada modalidade de matéria realiza sua
forma perfeita de maneira diferente das outras. No caso do movimento local, a
matéria define lugares naturais, isto é, locais onde ela se atualiza ou se
realiza melhor do que em outros. Assim, os corpos pesados (nos quais predomina
o elemento terra) têm como lugar natural o centro da Terra e por isso o
movimento local natural dos pesados é a queda. Os corpos leves (nos quais
predomina o elemento fogo) têm como lugar natural o céu e por isso seu movimento
local natural é subir. Os corpos não inteiramente leves (nos quais
predomina
o elemento ar) buscam seu lugar natural no espaço rarefeito e por isso seu movimento
local natural é flutuar. Enfim, os corpos não totalmente pesados (nos quais
predomina o elemento água) buscam seu lugar natural no líquido e por isso seu
movimento local natural é boiar nas águas.Além dos movimentos naturais, os
corpos podem ser submetidos a movimentos violentos, isto é, àqueles que
contrariam sua natureza e os impedem de alcançar seu lugar natural. Por
exemplo, quando o arqueiro lança uma flecha, imprime nela um movimento
violento, pois força-a a permanecer no ar, embora seu lugar natural seja a
terra e seu movimento natural seja a queda. Este pequeno resumo da Física
aristotélica nos mostra algumas características marcantes da ciência antiga:
●
é uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos (leve,
pesado,líquido, sólido, etc.);
●
é uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço (alto, baixo, longe,
perto, celeste, sublunar);
●
é uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança (perfeição imóvel,
imperfeição móvel);
●
é uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo sua matéria
e sua forma, ou segundo sua substância;
●
como conseqüência das características anteriores, é uma ciência que concebe a realidade
natural como um modelo hierárquico no qual os seres possuem um lugar natural de
acordo com sua perfeição, hierarquizando-se em graus que vão dos inferiores aos
superiores. Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna, isto é, a
que foi elaborada por Galileu e Newton, podemos notar as grandes diferenças:
●
para a física moderna, o espaço é aquele definido pela geometria, portanto, homogêneo,
sem distinções qualitativas entre alto, baixo, frente, atrás, longe, perto. É
um espaço onde todos os pontos são reversíveis ou equivalentes, de modo que não
há “lugares naturais” qualitativamente diferenciados;
●
os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser purificados de todas
as qualidades sensoriais – cor, tamanho, odor, peso, matéria, forma, líquido, sólido,
leve, grande, pequeno, etc. -, isto é, de todas as qualidades sensíveis, porque
estas são meramente subjetivas. O objeto é definido por propriedades objetivas
gerais, válidas para todos os seres físicos: massa, volume, figura. Torna se
irrelevante o tipo de matéria, de forma ou de substância de um corpo, pois
todos se comportam fisicamente da mesma maneira. Torna-se inútil a distinção
entre um mundo celeste e um mundo sublunar, pois astros e corpos terrestres
obedecem às mesmas leis universais da física;
●
a física estuda o movimento não como alteração qualitativa e quantitativa dos corpos,
mas como deslocamento espacial que altera a massa, o volume e a velocidade dos
corpos. O movimento e o repouso são as propriedades físicas objetivas de todos
os corpos da Natureza e todos eles obedecem às mesmas leis aquelas que Galileu
formulou com base no princípio da inércia (um corpo se mantém em movimento
indefinidamente, a menos que encontre um outro que lhe faça obstáculo ou que o
desvie de seu trajeto); e aquelas formuladas por Newton, com base no princípio
universal da gravitação (a toda ação corresponde uma reação que lhe é igual e
contrária). Não há diferença entre movimento natural e movimento violento, pois
todo e qualquer movimento obedece às mesmas leis;
●
a Natureza é um complexo de corpos formados por proporções diferentes de movimento
e de repouso, articulados por relações de causa e efeito, sem finalidade, pois
a idéia de finalidade só existe para os seres humanos dotados de razão e vontade.
Os corpos não se movem, portanto, em busca de perfeição, mas porque a causa
eficiente do movimento os faz moverem-se. A física é uma mecânica universal. A
física da Natureza se torna geométrica, experimental, quantitativa, causal ou mecânica
(relações entre a causa eficiente e seus efeitos) e suas leis têm valor universal,
independentemente das qualidades sensíveis das coisas. Terra, mar e ar obedecem
às mesmas leis naturais. A Natureza é a mesma em toda parte e para todos os
seres, não existindo hierarquias ou graus de imperfeição-perfeição, inferioridade-superioridade.
Há, ainda, uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna. A primeira
era uma ciência teorética, isto é, apenas contemplava os seres naturais, sem
jamais imaginar intervir neles ou sobre eles. A técnica era um saber empírico, ligado
a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela.
Numa sociedade escravista, que deixava tarefas, trabalhos e serviços aos escravos,
a técnica era vista como uma forma menor de conhecimento. Duas afirmações mostram
a diferença dos modernos em relação aos antigos: a afirmação do filósofo inglês
Francis Bacon, para quem “saber é poder”, e a afirmação de Descartes, para quem
“a ciência deve tornar-nos senhores da
Natureza”.
A
ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza, de conhecê-la
para apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A ciência não é apenas
contemplação da verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a
Natureza. Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular o
capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar
a Natureza, a nova ciência será inseparável da técnica. Na verdade, é mais
correto falar em tecnologia do que em técnica. De fato, a técnica é um conhecimento
empírico, que, graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas
para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é um saber teórico que se
aplica praticamente. Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que
serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro,
porém, é um objeto tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe
conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por
outro lado, seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve
para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber. Uma lente de
aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos
tecnológicos, pois sua construção
pressupõe
o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras palavras,
um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e
quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas. A ciência
moderna tornou-se inseparável da tecnologia.
As
mudanças científicas Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência. A
primeira delas se refere à passagem do racionalismo e empirismo ao
construtivismo, isto é, de um ideal de cientificidade baseado na idéia de que a
ciência é uma representação da realidade tal como ela é em si mesma, a um ideal
de cientificidade baseado na idéia de que o objeto científico é um modelo
construído e não uma representação do real, umaaproximação sobre o modo de
funcionamento da realidade, mas não o conhecimento absoluto dela. A segunda
mudança refere-se à passagem da ciência antiga – teorética, qualitativa – à
ciência moderna – tecnológica, quantitativa. Por que houve tais mudanças no
pensamento científico? Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (como a
sociedade) evolui e progride. Evolução e progresso são duas idéias muito
recentes – datam dos séculos XVIII e XIX -, mas muito aceitas pelas pessoas.
Basta ver o lema da bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham
natural falar em “Ordem e Progresso”.
As
noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma linha
reta contínua e homogênea (como a imagem do rio, que vimos ao estudar a metafísica).
O tempo seria uma sucessão contínua de instantes, momentos, fases, períodos,
épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de tal modo que o
que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes. Contínuo e
cumulativo, o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os seres (naturais e
humanos).
Evolução
e progresso são a crença na superioridade do presente em relação ao passado e
do futuro em relação ao presente. Assim, os europeus civilizados seriam superiores
aos africanos e aos índios, a física galileana-newtoniana seria superior à aristotélica,
a física quântica seria superior à de Galileu e de Newton. Evoluir significa:
tornar-se superior e melhor do que se era antes. Progredir significa: ir num
rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade superior. Evolução e
progresso também supõem o tempo como uma série linear de momentos ligados por
relações de causa e efeito, em que o passado é causa e o presente, efeito,
vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa idéia aparecer quando, por
exemplo, os manuais de História apresentam as “influências” que um acontecimento
anterior teria tido sobre um outro, posterior. Evoluir e progredir pressupõem
uma concepção de História semelhante à que a biologia apresenta quando fala em
germe, semente ou larva. O germe, a semente ou a larva são entes que contêm
neles mesmos tudo o que lhes acontecerá, isto é, o futuro já está contido no
ponto inicial de um ser, cuja história ou cujo tempo nada mais é do que o
desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente.
Essa
idéia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre países desenvolvidos
e subdesenvolvidos. Quando digo que um país é ou está desenvolvido, digo que
sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado desde que surgiu. Quando
digo que um país é ou está subdesenvolvido, estou dizendo que a finalidade –
que é a mesma para ele e para o desenvolvido – ainda não foi, mas deverá ser
alcançada em algum momento do tempo. Não por acaso, as expressões desenvolvido
e subdesenvolvido foram usadas para substituir duas outras, tidas como
ofensivas e agressivas: países adiantados e países atrasados, isto é, países evoluídos
e não evoluídos, países com progresso e sem progresso. Em resumo, evolução e
progresso pressupõem: continuidade temporal, acumulação causal dos
acontecimentos, superioridade do futuro e do presente com relação ao passado,
existência de uma finalidade a ser alcançada. Supunha-se que as mudanças
científicas indicavam evolução ou progresso dos conhecimentos humanos. Desmentindo
a evolução e o progresso científicos A Filosofia das Ciências, estudando as
mudanças científicas, impôs um desmentido às idéias de evolução e progresso.
Isso não quer dizer que a Filosofia das Ciências viesse a falar em atraso e
regressão científica, pois essas duas noções são idênticas às de evolução e
progresso, apenas com o sinal trocado (em vez de caminharcausal e continuamente
para frente, caminhar-se-ia causal e continuamente para trás).
O
que a Filosofia das Ciências compreendeu foi que as elaborações científicas e
os ideais de cientificidade são diferentes e descontínuos. Quando, por exemplo,
comparamos a geometria clássica ou geometria euclidiana (que opera com o espaço
plano) e a geometria contemporânea ou topológica (que opera com o espaço
tridimensional), vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases
sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas geometrias diferentes,
com princípios, conceitos, objetos, demonstrações completamente diferentes. Não
houve evolução e progresso de uma para outra, pois são duas geometrias diversas
e não geometrias sucessivas. Quando comparamos as físicas de Aristóteles,
Galileu-Newton e Einstein, ão estamos
diante de uma mesma física, que teria evoluído ou progredido, mas diante de
três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos, demonstrações, experimentações
e tecnologias completamente diferentes. Em cada uma delas, a idéia de Natureza
é diferente; em cada uma delas os métodos empregados são diferentes; em cada
uma delas o que se deseja conhecer é diferente. Quando comparamos a biologia
genética de Mendel e a genética formulada pela bioquímica (baseada na
descoberta de enzimas, de proteínas do ADN ou código genético), também não
encontramos evolução e progresso, mas diferença e descontinuidade. Assim, por
exemplo, o modelo explicativo que orientava o trabalho de Mendel era o da
relação sexual como um encontro entre duas entidades diferentes – o
espermatozóide e o óvulo -, enquanto o modelo que orienta a genética
contemporânea é o da cibernética e da teoria da informação. Quando comparamos a
ciência da linguagem do século XIX (que era baseada nos estudos de filologia,
isto é, nos estudos da origem e da história das palavras) com a lingüística
contemporânea (que, como vimos no capítulo dedicado à linguagem, estuda
estruturas), vemos duas ciências diferentes. E o mesmo pode ser dito de todas
as ciências.
Verificou-se,
portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias
científicas como conseqüência não de uma forma mais evoluída, mais progressiva
ou melhor de fazer ciência, e sim como resultado de diferentes maneiras de
conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar
tecnologias. O filósofo Gaston Bachelard criou a expressão ruptura epistemológica
i para explicar essa descontinuidade no
conhecimento científico. Rupturas epistemológicas e revoluções científicas Um
cientista ou um grupo de cientistas começam a estudar um fenômeno empregando
teorias, métodos e tecnologias disponíveis em seu campo de trabalho. Pouco a
pouco, descobrem que os conceitos, os procedimentos, os instrumentos existentes
não explicam o que estão observando nem levam aos resultados que estão
buscando. Encontram, diz Bachelard, um “obstáculo epistemológico”.Para superar
o obstáculo epistemológico, o cientista ou grupo de cientistas precisam ter a
coragem de dizer: Não. Precisam dizer não à teoria existente e aos métodos e
tecnologias existentes, realizando a ruptura epistemológica. Esta conduz à
elaboração de novas teorias, novos métodos e tecnologias, que afetam todo o campo
de conhecimentos existentes. Uma nova concepção científica emerge, levando
tanto a incorporar nela os conhecimentos anteriores, quanto a afastá-los
inteiramente. O filósofo da ciência Khun designa esses momentos de ruptura
epistemológica e de criação de novas teorias com a expressão revolução
científica, como, por exemplo, a revolução copernicana, que substituiu a
explicação geocêntrica pela heliocêntrica. Segundo Khun, um campo científico é
criado quando métodos, tecnologias, formas de observação e experimentação,
conceitos e demonstrações formam um todo sistemático, uma teoria que permite o
conhecimento de inúmeros fenômenos.
A
teoria se torna um modelo de conhecimento ou um paradigma científico. Em tempos
normais, um cientista, diante de um fato ou de um fenômeno ainda não estudado,
usa o modelo ou o paradigma científico existente. Uma revolução científica
acontece quando o cientista descobre que os paradigmas disponíveis não conseguem
explicar um fenômeno ou um fato novo, sendo necessário produzir um outro
paradigma, até então inexistente e cuja necessidade não era sentida pelos investigadores.
A ciência, portanto, não caminha numa via linear contínua e progressiva, mas
por saltos ou revoluções. Assim, quando a idéia de próton-elétron-nêutron entra
na física, a de vírus entra na biologia, a de enzima entra na química ou a de
fonema entra na lingüística, os paradigmas existentes são incapazes de
alcançar, compreender e explicar esses objetos ou fenômenos, exigindo a criação
de novos modelos científicos. Por que, então, temos a ilusão de progresso e de
evolução? Por dois motivos principais:
1.
do lado do cientista, porque este sente que sabe mais e melhor do que antes, já
que o paradigma anterior não lhe permitia conhecer certos objetos ou fenômenos.
Como trabalhava com uma tradição científica e a abandonou, tem o sentimento de que
o passado estava errado, era inferior ao presente aberto por seu novo trabalho.
Não é ele, mas o filósofo da ciência que percebe a ruptura e a descontinuidade
e, portanto, a diferença temporal. Do lado do cientista, o progresso é uma
vivência subjetiva;
2.
do lado dos não-cientistas, porque vivemos sob a ideologia do progresso e da evolução,
do “novo” e do “fantástico”. Além disso, vemos os resultados tecnológicos das
ciências: naves espaciais, computadores, satélites, fornos de microondas, telefones
celulares, cura de doenças julgadas incuráveis, objetos plásticos descartáveis,
e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos governos, pelas empresas
e pela propaganda como “signos do progresso” e não da diferença temporal. Do
lado dos não-cientistas, o progresso é uma crença ideológica. Há, porém, uma
razão mais profunda para nossa crença no progresso. Desde a Antiguidade,
conhecer sempre foi considerado o meio mais precioso e eficaz para combater o
medo, a superstição e as crendices. Ora, no caso da modernidade, o vínculo
entre ciência e aplicação prática dos conhecimentos (tecnologias) fez surgirem
objetos que não só facilitaram a vida humana (meios de transporte, de iluminação,
de comunicação, de cultivo do solo, etc.), mas aumentaram a
esperança
de vida (remédios, cirurgias, etc.). Do ponto de vista dos resultados práticos,
sentimos que estamos em melhores condições que os antigos e por isso falamos em
evolução e progresso. Do ponto de vista das próprias teorias científicas,
porém, a noção de progresso não possui fundamento, como explicamos acima.
Falsificação
X revolução
Vimos
que a ciência contemporânea é construtivista, julgando que fatos e fenômenos
novos podem exigir a elaboração de novos métodos, novas tecnologias e novas
teorias.
Alguns
filósofos da ciência, entre os quais Karl Popper, afirmaram que a re-elaboração
científica decorre do fato de ter havido uma mudança no conceito filosófico-científico
da verdade. Esta, como já vimos, foi considerada durante muitos séculos como a
correspondência exata entre uma idéia ou um conceito e a realidade. Vimos
também que, no século passado, foi proposta uma teoria da verdade como
coerência interna entre conceitos. Na concepção anterior, o falso acontecia
quando uma idéia não correspondia à coisa que deveria representar. Nanova
concepção, o falso é a perda da coerência de uma teoria, a existência de contradições
entre seus princípios ou entre estes e alguns de seus conceitos. Popper afirma
que as mudanças científicas são uma conseqüência da concepção da verdade como
coerência teórica. E propõe que uma teoria científica seja avaliada pela
possibilidade de ser falsa ou falsificada. Uma teoria científica é boa, diz
Popper, quanto mais estiver aberta a fatos novos que possam tornar falsos os
princípios e os conceitos em que se baseava. Assim, o valor de uma teoria não
se mede por sua verdade, mas pela possibilidade de ser falsa. A falseabilidade
seria o critério de avaliação das teorias científicas e garantiria a idéia de
progresso científico, pois é a mesma teoria que vai sendo corrigida por fatos
novos que a falsificam. A maioria dos filósofos da ciência, entre os quais
Khun, demonstrou o absurdo da posição de Popper. De fato, dizem eles, jamais houve
um único caso em que uma
teoria
pudesse ser falsificada por fatos científicos. Jamais houve um único caso em que
um fato novo garantisse a coerência de uma teoria, bastando impor a ela mudanças
totais. Cada vez que fatos provocaram verdadeiras e grandes mudanças teóricas,
essas
mudanças
não foram feitas no sentido de “melhorar” ou “aprimorar” uma teoria existente,
mas no sentido de abandoná-la por uma outra. O papel do fato científico não é o
de falsear ou falsificar uma teoria, mas de provocar o surgimento de uma nova
teoria verdadeira. É o verdadeiro e não o falso que guia o cientista, seja a verdade
entendida como correspondência entre idéia e coisa, seja entendida como coerência
interna das idéias.
Classificação
das ciências
Ciência,
no singular, refere-se a um modo e a um ideal de conhecimento que examinamos
até aqui. Ciências, no plural, refere-se às diferentes maneiras de realização
do ideal de cientificidade, segundo os diferentes fatos investigados e os diferentes
métodos e tecnologias empregados. A primeira classificação sistemática das
ciências de que temos notícia foi a de Aristóteles, à qual já nos referimos no
início deste livro. O filósofo grego empregou
três
critérios para classificar os saberes:
●
critério da ausência ou presença da ação humana nos seres investigados, levando
à distinção entre as ciências teoréticas (conhecimento dos seres que existem e agem
independentemente da ação humana) e ciências práticas (conhecimento de tudo
quanto existe como efeito das ações humanas); ● critério da imutabilidade ou
permanência e da mutabilidade ou movimento dos seres investigados, levando à
distinção entre metafísica (estudo do Ser enquanto Ser, fora de qualquer
mudança), física ou ciências da Natureza (estudo dos seres constituídos por matéria
e forma e submetidos à mudança ou ao movimento) e matemática (estudo dos seres
dotados apenas de forma, sem matéria, imutáveis,
mas
existindo nos seres naturais e conhecidos por abstração);
●
critério da modalidade prática, levando à distinção entre ciências que estudam
a práxis (a ação ética, política e econômica, que tem o próprio agente como
fim) e as técnicas (a fabricação de objetos artificiais ou a ação que tem como
fim a produção de um objeto diferente do agente). Com pequenas variações, essa classificação
foi mantida até o século XVII, quando, então, os conhecimentos se separaram em
filosóficos, científicos e técnicos. A partir dessa época, a Filosofia tende a
desaparecer nas classificações científicas (é um saber diferente do
científico), assim como delas desaparecem as técnicas. Das inúmeras classificações
propostas, as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por filósofos franceses
e alemães do século XIX, baseando-se em três critérios: tipo de objeto
estudado, tipo de método empregado, tipo de resultado obtido. Desses critérios
e da simplificação feita sobre as várias classificações anteriores, resultou
aquela
que se costuma usar até hoje:
●
ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria, álgebra, trigonometria,
lógica, física pura, astronomia pura, etc.);
●
ciências naturais (física, química, biologia, geologia, astronomia, geografia
física, paleontologia, etc.);
●
ciências humanas ou sociais (psicologia, sociologia, antropologia, geografia humana,
economia, lingüística, psicanálise, arqueologia, história, etc.);
●
ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem à invenção de tecnologias para
intervir na Natureza, na vida humana e nas sociedades, como por exemplo, direito,
engenharia, medicina, arquitetura, informática, etc.). Cada uma das ciências
subdivide-se em ramos específicos, com nova delimitação do objeto e do método
de investigação. Assim, por exemplo, a física subdivide-se em mecânica,
acústica, óptica, etc.; a biologia em botânica, zoologia, fisiologia, genética,
etc.; a psicologia subdivide-se em psicologia do comportamento, do desenvolvimento,
psicologia clínica, psicologia social, etc. E assim sucessivamente, para cada
uma das ciências. Por sua vez, os próprios ramos de cada ciência subdividem-se
em disciplinas cada vez mais específicas, à medida que seus objetos conduzem a
pesquisas cada vez mais detalhadas e especializadas. A ciência exemplar: a
matemática. A matemática nasce de necessidades práticas: contar coisas e medir
terrenos. Os primeiros a sistematizar modos de contar foram os orientais e,
particularmente, os fenícios, povo comerciante que desenvolveu uma
contabilidade, que posteriormente iria transformar-se em aritmética.
Os
primeiros a sistematizar modos de medir foram os egípcios, que precisavam, após
cada cheia do rio Nilo, redistribuir as terras, medindo os terrenos. Criaram a
agrimensura, de onde viria a geometria. Foram os gregos que transformaram a
arte de contar e de medir em ciências: a aritmética e a geometria são as duas
primeiras ciências matemáticas,
definindo o campo matemático como ciência da quantidade e do espaço, tendo por
objetos números, figuras, relações e proporções. Após os gregos, foram os
pensadores árabes que deram o impulso à matemática, descobrindo, entre coisas,
o zero,
Desconhecido
dos antigos. Embora, no início, as matemáticas estivessem muito próximas da
experiência ensorial – os números referiam-se às coisas contadas e as figuras
representavam objetos existentes -, pouco a pouco afastaram-se do sensorial, rumando
para a atividade pura do pensamento. Por esse motivo, Platão exigia que a
formação filosófica fosse feita através das matemáticas, por serem elas
puramente intelectuais, seus objetos verdadeiros sendo conhecidos por meio de
princípios e demonstrações universais e necessários. Também Descartes, no
século XVII, afirmou que podemos duvidar de todos os nossos conhecimentos e
idéias, menos da verdade dos conceitos e demonstrações matemáticos, os únicos
que são indubitáveis. Platão e Descartes enfatizaram o caráter puramente
intelectual e a priori das ciências matemáticas. A valorização da matemática
decorre de dois aspectos que a caracterizam:
1.
a idealidade pura de seus objetos, que não se confundem com as coisas percebidas
subjetivamente por nós; os objetos matemáticos são universais e necessários;
2.
a precisão e o rigor dos princípios e demonstrações matemáticos, que seguem regras
universais e necessárias, de tal modo que a demonstração de um teoremaseja a
mesma em qualquer época e lugar e a solução de um problema se faça pelos mesmos
procedimentos em toda a época e lugar. A universalidade e a necessidade dos
objetos e instrumentos teóricos matemáticos deram à ciência matemática um valor
de conhecimento excepcional, fazendo com que se tornasse o modelo principal de
todos os conhecimentos científicos, no Ocidente; enfim, a ciência exemplar e
perfeita. Os objetos matemáticos são números e relações, figuras, volumes e
proporções. Quantidade, espaço, relações e proporções definem o campo da
investigação matemática, cujos instrumentos são axiomas, postulados,
definições, demonstrações e operações. Objetos e procedimentos matemáticos
foram fixados, pela primeira vez, pelo grego Euclides, numa obra chamada
Elementos. Um axioma é um princípio cuja verdade é indubitável, necessária e
evidente por si mesma, não precisando de demonstração e servindo de fundamento
às
demonstrações.
Por exemplo: o todo é maior do que as partes; duas grandezas iguais a uma
terceira são iguais entre si; a menor distância entre dois pontos é uma reta. O
axioma é um princípio regulador do raciocínio matemático e, por ser universal e
evidente, é a priori. Um postulado é um princípio cuja evidência depende de ser
aceito por todos os que realizam uma demonstração matemática. É uma proposição
necessária para o encadeamento de demonstrações, embora ela mesma não possa ser
demonstrada, mas aceita como verdadeira. Por exemplo: “Por um ponto tomado em
um plano, não se pode traçar senão uma paralela a uma reta dada nesse plano”.
Os
postulados são convenções básicas, aceitas por todos os matemáticos. Uma
definição pode ser nominal ou real. A definição nominal nos dá o nome do objeto
matemático, dizendo o que ele é. É analítica, pois o predicado é a explicação
do sujeito. Por exemplo: o triângulo é uma figura de três lados; o círculo é
uma figura cujos pontos são eqüidistantes do centro. Uma definição real nos diz
o que é o objeto designado pelo nome, isto é, oferece a gênese ou o modo de construção
do objeto. Por exemplo: o triângulo é uma figura cujos ângulos somados são
iguais à soma de dois ângulos retos; o círculo é uma figura formada pelo
movimento de rotação de um semi-eixo à volta de um centro fixo. Demonstrações e
operações são procedimentos submetidos a um conjunto de regras que garantem a
verdade e a necessidade do que está sendo demonstrado, ou do resultado do
cálculo realizado. A matemática é, por excelência, a ciência
hipotético-dedutiva, porque suas demonstrações e cálculos se apóiam sobre um
sistema de axiomas e postulados, a partir dos quais se constrói a dedução
coerente ou o resultado necessário do cálculo.
Um
tema muito discutido na Filosofia das Ciências refere-se à natureza dos objetos
e princípios matemáticos. São eles uma abstração e uma purificação dos dados de
nossa experiência sensível? Originam-se da percepção? Ou são realidades ideais,
alcançadas exclusivamente pelas operações do pensamento puro? São inteiramente
a priori? Existem em si e por si mesmos, de tal modo que nosso pensamento
simplesmente os descobre? Ou são construções perfeitas conseguidas pelo
pensamento humano? Essas perguntas tornaram-se necessárias por vários motivos. Em
primeiro lugar, porque uma corrente filosófica, iniciada com Pitágoras e
Platão, mantida por Galileu, Descartes, Newton e Leibniz, afirma que o mundo é
em si mesmo matemático, isto é, a estrutura da realidade é de tipo matemático.
Essa concepção garantiu o surgimento da física matemática moderna. Em segundo
lugar, porque o desenvolvimento da álgebra contemporânea e das chamadas
geometrias não-euclidianas (ou geometrias imaginárias) deram à matemática uma
liberdade de criação teórica sem precedentes, justamente por haver abandonado a
idéia de que a estrutura da realidade é matemática. Nesse segundo caso, como já
dizia Kant, a matemática é uma pura invenção do espírito humano, uma construção
imaginária rigorosa e perfeita, mas sem objetos correspondentes no mundo. Em
terceiro lugar, porque, em nosso século, o avanço da criação e da construção matemáticas foi decisivo para o surgimento da
teoria da relatividade, na física, da teoria das valências, na química, e da
teoria sobre o ácido desoxirribonucléico, na biologia. Em outras palavras,
quanto mais avançou a invenção e a criação matemática, tanto mais ela tornou-se
útil para as ciências da Natureza, fazendo com que, agora, tenhamos que
indagar: Os objetos matemáticos existem realmente (como queriam Platão, Galileu
e Descartes), formando a estrutura do mundo, ou esta é uma pura construção
teórica e por isso pode valer-se da construção matemática? Lembremos que a
palavra epistemologia é composta de dois termos gregos: episteme, que significa
ciência, e logia, vinda de logos, significando conhecimento. Epistemologia é o
conhecimento filosófico sobre as ciências.