1.
Introdução
Kuhn, em sua obra principal
intitulada Estrutura das Revoluções
Científicas2
(1962), procura dar ênfase ao caráter total das revoluções científicas
que produzem mudanças a nível metodológico, ontológico e semântico, gerando,
desta forma, uma incomensurabilidade global entre tradições paradigmáticas.Mas
Kuhn também admite que as revoluções científicas produzem a substituição
parcial de um paradigma e ocasionam uma incomensurabilidade local. Tais ideias
não são elucidadas nessa obra, e só iremos compreendê-las em seus pós-escritos.
Assim, neste primeiro momento, pretendemos esclarecer quando uma revolução
provoca uma mudança total ou parcial de um paradigma e, também, o tipo de
incomensurabilidade que ela produz.Em segundo lugar, apresentaremos as críticas
à concepção de revolução científica de Kuhn. Dentre elas destacaremos as
acusações de irracionalismo e relativismo, consideradas como as que mais
influenciaram o autor na reformulação de sua concepção original acerca das
revoluções científicas.Em terceiro lugar, mostraremos no artigo O que são revoluções científicas? (1987),
do próprio autor, como ele concebe o seu novo conceito de revolução científica3, após
reformulá-lo em face às críticas que sua concepção original sofreu.
Consideraremos que esta nova maneira de conceber as revoluções é menos radical
que a anterior, na medida em que privilegia apenas a perspectiva semântica, o
que se configura como uma mudança parcial entre paradigmas. E será esta nova
concepção de revolução que ele passará a adotar nos seus escritos pós-Estrutura.Em
nossa análise pontuamos que ao reformular sua concepção acerca das revoluções
científicas, substituindo a ideia de uma mudança total entre tradições paradigmáticas
rivais, na qual há uma incomensurabilidade metodológica, ontológica e semântica
que as separa por uma mudança parcial, na qual ocorre apenas uma
incomensurabilidade semântica entre elas, Kuhn não abandona os outros dois
aspectos envolvidos na mudança paradigmática, mas os integra na
incomensurabilidade semântica.
2.
A
concepção de revolução científica na Estrutura
Na Estrutura, Thomas Kuhn nos apresenta, sob uma perspectiva
histórica, como ocorre a evolução de uma ciência até atingir sua maturidade.
Para ele, a ciência passa, no decorrer de seu desenvolvimento, por estágios
sucessivos, que são ora cumulativos (mudança intraparadigmática) ora não
cumulativos (mudança interparadigmática). Estes últimos se caracterizam pela
substituição de um paradigma por outro, através de uma revolução. É sobre esse
último tipo de mudança que será dado ênfase deste trabalho. Mas, para que fique claro o que ocorre durante uma revolução
científica, faz-se necessário esclarecermos, brevemente, os estágios
característicos do desenvolvimento de uma ciência, que são: o pré-paradigmático
e o paradigmático; estes últimos são intercalados por períodos em que ocorre
uma revolução científica.No período
pré-paradigmático várias escolas ou grupos disputam entre si qual deles
estabelecerá os fundamentos para nortear as pesquisas de um campo de estudo.
Estas disputas se resolvem por meio da persuasão e geram o consenso e o
comprometimento com um único paradigma4, que passa a direcionar as pesquisas
desse campo. A ciência atinge, assim, seu estágio paradigmático ou de
maturidade, no qual os cientistas dedicam suas pesquisas a precisar, articular
e aplicar o paradigma na explicação de novos fatos ou na resolução de novos
problemas. A pesquisa realizada nesse estágio é a de Ciência Normal. Como
resultado das pesquisas nesse período, temos um progresso intraparadigmático,
que produz o aprofundamento e a ampliação do paradigma.
Contudo, no decorrer da pesquisa
de Ciência Normal, os cientistas se deparam com problemas que resistem à
abordagem dada pelo paradigma, que são as anomalias. Com isso, a comunidade
científica questiona-se sobre as bases de seu campo de estudo, ocasionando uma
crise.Uma crise divide a pesquisa científica em dois grupos, os cientistas que
tratam a anomalia como um problema de Ciência Normal tentando resolvê-la a luz
do paradigma vigente, para isso eles “[…] conceberão numerosas articulações e
modificações ad hoc de sua teoria
[...]” (KUHN, 2011, p.108) e os que buscam dar uma nova abordagem ao problema;
estes praticam o que Kuhn denomina de Ciência Extraordinária, procurando
descobrir um novo paradigma.A crise5 pode terminar com a descoberta de um novo
paradigma para solucionara anomalia. Com isso, cria-se uma disputa entre
tradições paradigmáticas rivais. Se os adeptos da nova forma de resolução do problema
conseguirem convencer os defensores do antigo paradigma, por meio da persuasão,
de que sua proposta é mais promissora para nortear a prática científica que a
antiga, então ocorre uma revolução científica.
Kuhn, em sua obra Estrutura, define as revoluções como
“[…] aqueles episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um
paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo
incompatível com o anterior” (KUHN, 2011, p. 125). Assim, quando ocorre uma
revolução, há uma substituição de uma tradição paradigmática por outra, que
pode ocorrer de uma forma total ou parcial.Muito embora Kuhn admita que uma
revolução possa provocar uma mudança parcial entre paradigmas, ele não deixa
muito claro como se dá essa mudança. Compreenderemos melhor este tipo de mudança
quando analisarmos o seu artigo O que são
revoluções científicas? (1987). A ênfase dada por ele na Estrutura é a revolução que provoca uma substituição total entre
paradigmas rivais, havendo entre elas uma incomensurabilidade.
Ao definir as tradições paradigmáticas
como incomensuráveis, Kuhn quer deixar claro que há entre elas uma certa
incompatibilidade6.
Isso ocorre, porque cada tradição paradigmática elege os problemas que
considera mais relevantes, utiliza os instrumentos científicos com objetivos diferentes,
atribui significados específicos para os conceitos das teorias e percebe o
mundo de formas distintas. Esses aspectos envolvidos na incomensurabilidade
entre tradições paradigmáticas rivais foram classificados pelos estudiosos da
obra de Kuhn em três tipos: metodológica, ontológica e semântica. (GATTEI,
2008, p.102), caracterizando, assim, tal incomensurabilidade como total.A
incomensurabilidade metodológica ocorre quando dois paradigmas divergem na
definição dos problemas relevantes, nos modelos de resolução de problemas e nos
métodos e técnicas a serem utilizados nas pesquisas.Um exemplo que nos mostra essas
mudanças dos pontos apontados acima nos padrões da pesquisa científica pode ser
ilustrado pelo que ocorreu na química quando houve a substituição do paradigma
do flogisto pelo de Lavosier. Neste caso, uma determinada substância passou a
ser classificada de outra forma: o ar puro passou a ser concebido como
oxigênio. Podemos dizer, de maneira mais sucinta, que ocorreu uma alteração na
classificação dos fenômenos mais importantes a serem estudados.
A incomensurabilidade ontológica
é a que Kuhn analisa mais detalhadamente por se tratar da forma como os
cientistas percebem o mundo7. Para o filósofo, “[…] por exercerem sua
profissão em mundos diferentes, os dois grupos de cientistas veem coisas
diferentes quando olham de um mesmo ponto para a mesma direção” (KUHN, 2011, p.
192). Dessa forma, quando cientistas, com paradigmas diferentes, olham o mesmo
fenômeno, observam coisas distintas.Podemos
dizer que o paradigma determina o que cientista classificará como mais
relevante antes da experiência com o mundo externo. Sendo assim, ele já tem
pressuposto para onde deve direcionar o seu olhar. Para esclarecer o direcionamento
no olhar do cientista dado pelo paradigma, o filósofo nos apresenta como
analogia a imagem da Gestalt do pato-coelho, na qual uma tradição paradigmática
ensinaria seus praticantes a “verem” na imagem o coelho, enquanto a outra o
pato.
A incomensurabilidade semântica
diz respeito à divergência quanto ao significado dos conceitos, empregados por
comunidades científicas, que são norteadas por paradigmas diferentes. Em outras
palavras, “[…] dentro do novo paradigma, termos, conceitos e experiências
antigos estabelecem novas relações entre si” (KUHN, 2011, p. 191).Kuhn procura
ilustrar tal ideia através da diferença semântica do termo “terra” nas
tradições paradigmáticas de Copérnico e Ptolomeu. Enquanto que para a tradição
copernicana ela é apenas mais um planeta no sistema solar – e este é só mais um
sistema dentre muitos –, para a ptolomaica a terra é vista como o centro do
universo, em torno da qual todos os astros deveriam girar ao seu redor. Com isso, o que determina o sentido
de um termo é a estrutura (paradigma) na qual ele está inserido, isto é, apesar
do termo não mudar, as significações são distintas.Ao
apresentar a sua tese de incomensurabilidade entre tradições paradigmáticas na Estrutura, Kuhn dá igual importância aos
três aspectos que ela abarca, muito embora não expresse claramente essa ideia.
Mas, ao analisarmos os exemplos de revoluções científicas apresentados por ele
nessa obra, percebemos que as revoluções envolvem uma incomensurabilidade
total, isto é, elas provocam mudanças nos aspectos metodológico, semântico e
ontológico; e ele atribui igual valor a cada um deles.Tal posição fica clara no
exemplo de revolução que ocorreu na química, com John Dalton, pois Kuhn procura
mostrar que ali ocorreram mudanças nos aspectos metodológicos, ontológicos e
semânticos e que todos eles foram relevantes para que ocorresse a mudança de
paradigma. No plano semântico ele diz que:
[…] os químicos deixaram de
escrever que os dois óxidos de, por exemplo, carbono, continham 56 por cento de
72 por centro de oxigênio por peso; em lugar disso, passaram a escrever que um
peso de carbono combinar-se-ia ou com 1,13 ou com 2,6 pesos de oxigênio (KUHN, 2011, p.173).
Percebe-se, assim, que após a
descoberta de Dalton ocorreu uma mudança na maneira dos cientistas descreverem
os fenômenos. Em relação à mudança na metodologia, tal revolução tornou
possível “[…] novas experiências, especialmente as de Gay-Lussac sobre a
combinação dos volumes, [...] com as quais os cientistas nunca haviam sonhado”
(KUHN, 2011, p.173), mudando assim, a maneira como os cientistas praticam a
ciência. Por fim, no que diz respeito ao aspecto ontológico, após a
substituição do antigo paradigma, os cientistas passaram “[…] a viver em um
mundo no qual as reações químicas se comportavam de maneira bem diversa do que
tinham feito anteriormente” (KUHN, 2011, p.173).
3.
As
críticas de Popper e Lakatos
A concepção de revolução
científica de Kuhn que nos é apresentada na Estrutura
foi criticada pelos filósofos da ciência, dentre eles se destacam Imre
Lakatos e Karl Popper. O primeiro, em seu artigo Falsificação e metodologia dos Programas de Investigação Científica (1978), considera que a concepção de revolução
científica de Kuhn é irracional, visto que:
Não existe qualquer causa
racional particular para o aparecimento de uma “crise” kuhniana. “Crise” é um
conceito psicológico; é um pânico contagioso. Em seguida, emerge um novo
“paradigma”, não comparável com o seu antecessor. Não existem padrões racionais
que permitam sua comparação. [...] [e também] Não existem padrões
supra-paradigmáticos. [...] Portanto, do ponto de vista de Kuhn, a revolução
científica é irracional [...] (LAKATOS,
1978, p. 104-105).
No processo de escolha entre
paradigmas rivais, estes não podem ser comparados por causa da
incomensurabilidade; é sobre este ponto que Lakatos desfere sua crítica. Segundo o filósofo, não existe um
fio condutor entre ciência antes e depois da revolução científica. Ele diz que
se não há padrões racionais que possam comparar as tradições paradigmáticas
rivais, então as revoluções, tal como são concebidas na Estrutura, são irracionais.Outro filósofo que criticou a concepção
de revolução científica de Kuhn, acusando-a de relativista, foi Karl Popper na
obra “O mito do contexto” (1976). Diz
ele que para que possamos dizer de duas teorias, que se relacionam com os
mesmos problemas, que uma é melhor que a outra – que houve progresso científico
–, elas tem que poder ser comparadas. Contudo, como mostramos acima, o conceito
de incomensurabilidade não possibilita, na concepção de Kuhn, esta comparação.
Vejamos nas palavras de Popper a sua principal tese:
Defendo que este tipo de
comparação entre sistemas que historicamente tiveram origem nos mesmos
problemas (digamos explicar o movimento dos corpos celestes) é sempre possível.
Teorias que oferecem soluções dos mesmos problemas ou de problemas estreitamente
relacionados com estes, são, em regra, comparáveis e as discussões entre eles
são sempre possíveis e proveitosas. E são não só possíveis como, de facto,
ocorrem (sic) (POPPER, 2009, p.79).
Esse posicionamento ataca o
cerne da teoria da incomensurabilidade de Kuhn que aponta para o fato de que
paradigmas – ou teorias – diferentes são incomensuráveis em três níveis:
ontológico, metodológico e semântico, não sendo, consequentemente, possível a
comparação entre elas.Na obra
supracitada, Popper afirma que embora exista um deslocamento de Gelstalt de uma teoria para outra, no
plano lógico – que para ele é o mais relevante – podemos compará-las, através
do método da tradução de linguagem entre paradigmas, e, assim, anular o
relativismo.Para livrar-se das críticas de irracionalismo e relativismo, Kuhn
reformulou sua concepção de incomensurabilidade e, consequentemente, de
revolução científica. Vejamos, então, como ocorreu essa reformulação na seção
seguinte.
4.
A
concepção de revolução científica no artigo pós-Estrutura
No seu artigo O que são revoluções científicas? (1987),
Kuhn reformula sua concepção original de revoluções científicas. Ele passa a
entender as revoluções como substituição de um paradigma por outro, que geram
uma incomensurabilidade apenas no
aspecto semântico. Tal forma de conceber as
revoluções difere da apresentada na Estrutura,
que ocasionava uma incomensurabilidade total entre as tradições paradigmáticas.No
referido artigo, as revoluções científicas são entendidas como “[…] descobertas
que não podem ser acomodadas nos limites dos conceitos que estavam em uso antes
de elas terem sido feitas” (KUHN, 2003, p. 25). Kuhn quer dizer que as
revoluções científicas, que conduzem a substituição de paradigmas, provocam uma
mudança de caráter semântico, tendo como principal característica a divergência
nas significações dos conceitos que eram utilizados pelos cientistas. O
filósofo apresenta, nesse sentido, três características principais que nos
ajudam a compreender melhor a natureza dessas revoluções, são elas: o holismo,
a mudança referencial e a realocação das categorias taxonômicas.
A primeira característica é
explicada nos seguintes termos: “[…] as mudanças revolucionárias são, de uma
certa forma, holísticas. Isto é, elas não podem ser feitas gradualmente, um
passo de cada vez” (KUHN, 2003, p. 41). Nesse aspecto, Kuhn se opõe aos
teóricos da Filosofia da Ciência que concebiam a escolha de teorias rivais
através de critérios lógico-metodológicos, no qual o teste é feito passo a passo.
Para ele, os valores individuais e da comunidade científica são os mais
determinantes na decisão entre tradições paradigmáticas. Sendo assim, a
substituição de paradigma não segue um padrão sistemático – como parâmetro-base
–; ela deve ser experimentada como uma mudança súbita.A segunda característica
se refere à “[…] mudança na maneira por que as palavras e expressões se ligam à
natureza, uma mudança na maneira por que são determinados seus referentes”
(KUHN, 2003, p. 42). Este caráter corresponde ao que na Estrutura era visto como mudança de significação ou de referencial,
pois neste também há uma alteração na forma como ocorre a conexão dos signos
linguísticos com o mundo. Assim, podemos dizer que este aspecto da nova
concepção de revolução científica apresentado no pós-escrito é equivalente à
incomensurabilidade semântica que nos é mostrada na obra principal de Kuhn. E como terceira característica
da nova concepção de revolução científica, temos a realocação dos termos em
padrões de similaridade ou em categorias taxonômicas. Esta característica é
apresentada por Kuhn como sendo a mais significativa nesta definição, isto
porque, para ele, “[…] o que caracteriza as [novas] revoluções, assim, é a
mudança em várias das categorias taxonômicas que são pré-requisitos para descrições e generalizações científicas” (KUHN, 2003, p.
42). Para ilustrar esta característica, o autor utiliza como exemplo a
compreensão do fenômeno “movimento” no âmbito da física aristotélica e da
moderna8,
isto é, estes dois paradigmas têm categorias taxonômicas diferentes, pois
enquanto que a primeira entende como movimento todo tipo de mudança9, a segunda
só atribui esse nome ao deslocamento de posição.Após
analisarmos as duas concepções de revolução científica, percebemos que a forma
como a incomensurabilidade se apresenta em ambas define a principal diferença
entre elas, pois na concepção da Estrutura
os três níveis de incomensurabilidade tem igual importância, enquanto que
no pós-escrito o aspecto que o autor privilegia é o semântico.
Outro aspecto que denota a
diferença na forma de tratar as revoluções científicas e a incomensurabilidade,
em seu pós-escrito, diz respeito aos exemplos utilizados por Kuhn que são
diferentes dos da antiga concepção.Na Estrutura
os três aspectos de incomensurabilidades têm a mesma relevância, como foi
mostrado no exemplo da revolução de Dalton na Química. No artigo do pós-
escrito, isso não ocorre, visto que neste é dado uma maior relevância para o
aspecto semântico. E, o exemplo que Kuhn utiliza para ilustrar essa sua nova
concepção é o da Física Quântica de Max Planck, que ele caracteriza como tendo
ocorrido uma mudança semântica ou de referencial. Tal posição nos mostra que a
revolução agora é entendida apenas em termos linguísticos, ou seja, no que diz
respeito à maneira como os termos se ligam à natureza, pois nessa mudança
ocorreu apenas a substituição do termo “ressoadores” (acústica) por
“osciladores” para que a expressão torne a teoria mais precisa.
5.
Considerações finais
Como vimos,
Thomas Kuhn nos apresenta na Estrutura (1962)
e em seu pós- escrito O que são
revoluções científicas (1987) duas formas de conceber as revoluções científicas. Nesta conclusão gostaríamos de deixar claras as diferenças
entre as duas concepções e o que elas têm em comum.A principal diferença entre
elas está na forma de tratar as revoluções científicas e, consequentemente, a
incomensurabilidade entre tradições paradigmáticas – por se tratar de um
conceito intimamente relacionado com as revoluções. Podemos observar isso nas
características das duas concepções, pois enquanto que na Estrutura a revolução apresenta-se como uma substituição total
entre paradigmas gerando incomensurabilidade nos níveis metodológicos,
ontológicos e semânticos, a do pós- escrito é mais sutil, de difícil percepção,
isto porque se dá apenas parcialmente, no nível semântico, como uma mudança de
significado dos termos.Tendo por base essa
diferenciação, fica claro porque Kuhn afirma, mas não esclarece na Estrutura, que as revoluções científicas
são “[…] episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma
mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o
anterior” (KUHN, 2011, p. 125).
No nosso entender, quando o autor diz que as
revoluções são totais, ele refere-se àquelas que ocasionam incomensurabilidade
nos três aspectos entre tradições paradigmáticas. Já quando considera as
revoluções como parciais, ele está dizendo que a substituição provocou mudança
apenas em nível semântico.Assim como as diferenças, as semelhanças das
concepções estão também nas suas características de incomensurabilidade, pois
como demonstramos, os níveis ontológicos e metodológicos da antiga concepção
foram integrados na nova. Sendo assim, grande parte dos aspectos
característicos da revolução científica que se apresentam na Estrutura
estão presentes na nova concepção que se apresenta no pós-escrito, mas,
como vimos, com relevância diferente. Na primeira, os três aspectos da
incomensurabilidade tem a mesma importância, enquanto que na segunda, o aspecto
semântico acaba sendo privilegiado em detrimentos dos outros que aparecem
apenas como integrando este.
Nosso apontamento no início do
artigo é o de que os aspectos metodológico e ontológico não são abandonados por
Kuhn em sua nova concepção de revolução científica, mas apenas recebem menor
relevância, vejamos então como isso se dá.O aspecto metodológico da
incomensurabilidade integra a nova concepção de revolução científica na segunda
característica de revolução (do pós-escrito), que é a de mudança de categorias
taxonômicas, pois junto com elas mudam também os problemas, a metodologia e
todos os exemplares. Tais mudanças podem ser identificadas com umdos aspectos apresentados na primeira concepção – o de que paradigmas
diferentes têm metodologias incomensuráveis.Ao identificarmos que este aspecto
da incomensurabilidade está incluso na nova concepção de revolução, também
observamos que não é dado a ele a mesma importância que tinha na substituição
paradigmática da Estrutura. Para que
tal mudança ocorra faz-se necessário que mudem as categorias taxonômicas, e
essas são parte do aspecto semântico, que é o privilegiado por Kuhn.No que diz respeito ao aspecto
ontológico da incomensurabilidade podemos percebê-lo como integrando a concepção
semântica de revolução em uma passagem do artigo mencionado acima, na qual o
Kuhn afirma que:
Em boa parte do aprendizado da
linguagem, esses dois tipos de conhecimento – conhecimento das palavras e
conhecimento da natureza – são adquiridos em conjunto; na realidade, não dois
tipos de conhecimento, mas as duas faces da moeda única que uma linguagem
fornece (KUHN, 2003, p. 44).
Assim “conhecimento das palavras”
e “conhecimento da natureza” fazem parte do mesmo tipo de aprendizagem que são fornecidos
por uma linguagem. Com isso, o aspecto ontológico subordina-se ao âmbito do
nível semântico, pois não tem a mesma relevância que tinha na Estrutura, dado que ele é apenas uma
consequência que está integrada na mudança de significação.Mas se as reformulações
da concepção de revolução científica ocorreram por causa das críticas, então a
pergunta que temos de responder é: a nova concepção de revolução científica
conseguiu resolver os problemas de irracionalismo e relativismo apontado pelos críticos?
Em nosso entendimento a nova
concepção de Kuhn conseguiu solucionar os problemas relacionados com a acusação
de irracionalismo, pois ao determinar que o principal caráter da revolução é a
mudança semântica ou referencial, o autor consegue estabelecer uma forma de
comunicação entre paradigmas diferentes e a consequente tradução de linguagem
entre paradigmas. Ela permite que tradições paradigmáticas diferentes possam
colocar em termos com as significações de seu paradigma o que a outra
comunidade científica está tentando dizer. Com isso, cria-se um fio condutor
entre as duas concepções, o que possibilita comparar quem tem o melhor
apuramento teórico, dando uma base racional às revoluções científicas.
Por fim, entendemos que a
reformulação feita por Thomas Kuhn em sua teoria da ciência, também conseguiu
livrá-lo das críticas de relativismo. Afirmamos isso com base no seguinte
raciocínio: a principal tese de Karl Popper é, como vimos, a de que se não há
progresso científico, então não podermos comparar teorias (e se pode perceber
esta característica na concepção do filósofo americano através do conceito de
incomensurabilidade); conclui, assim, Popper que, para Kuhn, em cada período de
tempo em que há uma teoria dominante (paradigma), deve-se ter uma verdade
diferente, sendo tal posição considerada como relativista. Kuhn, ao reformular sua teoria,
encontra uma forma de contornar essa crítica, pois como na definição de
revolução científica do escrito pós-Estrutura
o aspecto semântico da incomensurabilidade é o que recebe mais relevância e
caracteriza as revoluções, então o filósofo adquiriu uma forma de poder
comparar teorias, a da tradução de linguagens entre paradigmas. Através desse
artifício é possível comparar teorias científicas e dizer se uma é melhor que a
outra; isto possibilita dizer que há progresso científico na teoria do autor.
Notas
4 Seguimos aqui as definições dadas por Kuhn ao termo paradigma de seu
posfácio de 1969. Neste, o autor nos apresenta dois sentidos deste termo: “[o
primeiro] indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc.,
partilhadas pelos membros de uma comunidade científica. [...] [o segundo] denota
um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças
que, empregadas como modelos ou exemplos, podem
substituir regras explícitas como base para a solução
dos restantes quebra-cabeças da Ciência Normal” (KUHN, 2011, p. 220).
5 O fim de uma crise paradigmática pode se dar de três formas (Cf. KUHN,
2011, p. 115-16). Contudo, focaremos apenas no término que desemboca em uma
revolução científica.
6 Na definição de revolução científica da Estrutura a incomensurabilidade pode ser entendida como
incompatibilidade na medida em que impossibilita a comparação entre paradigmas
diferentes. Contudo, ao reformular a concepção de revolução, Kuhn não utiliza
mais este termo para descrever este conceito, pois a tradução entre tradições
paradigmáticas torna possível a comunicação entre elas.
7 Kuhn diz também que se considerarmos que o único acesso que os
cientistas têm a esse mundo é através do que eles veem e fazem, então podemos
dizer que após uma revolução científica o próprio mundo do praticante da
ciência muda.
8 O exemplo de mudança de categorias taxonômicas aparece no texto O que são revoluções científicas?
Essa característica é mostrada
de modo sintético nas p. 43-44.
9 Segue a citação: “Quando o termo ‘movimento’ ocorre na física
aristotélica, ele se refere à mudança em geral, não apenas à mudança de posição
de um corpo físico. A mudança de posição, o tópico exclusivo da mecânica para
Galileu e Newton, é para Aristóteles uma entre várias subcategorias do
movimento. Outras incluem crescimento (a transformação de uma bolota em um
carvalho), alterações de intensidade (o aquecimento de uma barra de ferro), e
várias mudanças qualitativas mais gerais (a transição da doença à saúde)”
(KUHN, 2006, p. 28).
Referências
KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções científicas.
11ª Edição, São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.
. O caminho desde A Estrutura: Ensaios filosóficos, 1970-1993, com
uma entrevista autobiográfica. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
. “O que são revoluções científicas?”. In KUHN, T. S. O caminho desde A Estrutura: Ensaios
filosóficos, 1970-1993, com uma entrevista autobiográfica. São Paulo:
Editora UNESP, 2006, p. 23-45.
. “Comensurabilidade, comparabilidade, comunicabilidade”. In: KUHN, T. S.
O caminho desde a estrutura. São Paulo: Editora Unesp, 2006, p. 47-76. LAKATOS, I. Falsificação e metodologia dos programas de investigação científica.
Lisboa-Portugal: Edições 70
(Biblioteca de filosofia contemporânea), 1978, p.104-107. LAKATOS, I. &
MUSGRAVE, A. (Org.) A crítica e o
desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979, p.5-31, 63-71.
POPPER, K. O mito do Contexto. Lisboa: Edições 70,
2009.
. “O mito do Contexto” In POPPER,
Karl. O mito do Contexto. Lisboa:
Edições 70, 2009.
STEGMÜLLER, W. A Filosofia Contemporânea: introdução
crítica. São Paulo, EPU, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977, p.353-
391.
Credito de: Luiz Pedro da Silva Seabra.