Brasil é viciado e eivado de apologias ao intervencionismo e à onisciência de burocratas e reguladores. Material altamente recomendado para todos os estudantes de direito. Você pode conferi-la abaixo: Abaixo, segue uma entrevista concedida ao Students For Liberty Brasil. Nela, André conta mais sobre essa cultura, além de expor suas ideias sobre propriedade intelectual, externalidades negativas e sobre a função social, um dos princípios norteadores do Código Civil vigente no Brasil. A entrevista foi conduzida pelo sempre brilhante Luan Sperandio. Você tem dito que há uma cultura do intervencionismo no ensino jurídico brasileiro. Podemos dizer que os acadêmicos de direito são submetidos a uma doutrinação estatista? Há na academia jurídica brasileira pluralidade de ideias? Isso tem avançado?
Não diria que há uma doutrinação, pois não creio que em todos os casos seja algo intencional por parte dos professores. O fato é que nosso país tem uma Constituição de viés claramente socialista, que criou uma máquina estatal enorme. Isso não apenas exige um forte aparato burocrático e uma tributação exorbitante, mas também acaba refletindo na própria conformação do ordenamento jurídico, que decorre direta ou indiretamente da Constituição. Outros fatores que contribuem para essa cultura do intervencionismo no ensino jurídico são os seguintes:
(I) O controle do
MEC sobre os currículos das Faculdades de Direito no país (certa vez me pediram
para inserir em meu plano de ensino da disciplina
Direito Empresarial algo relacionado a questões étnico raciais e
indígenas, e disseram que era "para atender uma exigência do MEC).
(II)
a transformação das Faculdades de Direito em cursos
preparatórios para o Exame da OAB e concursos públicos. Como a doutrina justifica o dirigismo contratual e a relativização da
autonomia da vontade? E quais as consequências que se verificam a partir desse
intervencionismo aqui no Brasil?Resumidamente,
alega-se que as relações contratuais, atualmente, tendem a ser assimétricas,
especialmente em certos tipos de contratação. Contrato de emprego
e contrato de consumo são os exemplos mais sintomáticos. Essa assimetria
exigiria uma intervenção estatal para proteger as partes contratantes mais
fracas, as quais o direito normalmente classifica com termos técnicos como
'vulneráveis' ou 'hipossuficientes'. Grosso modo, pode-se dizer que é uma
forma vulgar de aplicação da velha e falaciosa teoria das falhas de
mercado.
Algumas
consequências que apontei em meu estudo são:
(III) risco moral: essas partes protegidas pelo estado tendem a perder
a noção de responsabilidade ao assinar um contrato, já que 'contrato não vale
mais nada mesmo'.
(IV) paternalismo judicial: cria-se uma jurisprudência extremamente
protetiva que exacerba o risco moral já referido e torna os litígios
contratuais uma espécie de novela mexicana
do mocinho contra bandido; outras vezes, cria-se um antipaternalismo
também pernicioso, quando juízes não-simpatizantes do dirigismo acabam
ignorando problemas contratuais sérios, como fraude etc.;
(V) incentivos à litigiosidade: afinal, já que contrato não vale mais nada
mesmo, por que vou cumprir voluntariamente um acordo se posso ir a juízo
e me livrar da obrigação assumida sob as mais variadas e
abstratas alegações, como abusividade da cláusula ou descumprimento
da 'função social do contrato'?;
(VI) ciclo vicioso intervencionista: o excesso de dirigismo contratual gera problemas
contratuais que acabam gerando mais intervenção. Não é à toa que os setores de
mercado que mais abarrotam o Judiciário com litígios contratuais são aqueles mais
regulados financeiro, telecomunicações, seguros e planos
de saúde etc., cujos contratos são fortemente dirigidos pela
lei e por normais infra-legais das respectivas autoridades regulatórias. No direito comparado, por acaso ainda há países em que o pacta
sunt servanda predomina sobre essa ideia de relativização dos contratos?
Sinceramente, não
conheço a situação de cada país, mas posso garantir que o Brasil não é o
criador dessa ideia. Trata-se, como de costume, da importação de uma
teoria de países com tradição intervencionista como a nossa. Em países com uma
maior tradição liberal, parece-me que os contratos ainda são respeitados, como
demonstram alguns índices de liberdade econômica publicados anualmente (Heritage Foundation e Doing Business,
por exemplo). Qual seu posicionamento em relação à função social (do contrato, da
propriedade e da empresa)? Função social é
apenas mais um 'conceito jurídico indeterminado' que serve para a legitimação
de decisões intervencionistas, gerando insegurança jurídica. O ordenamento
jurídico está abarrotado de expressões desse tipo. Vivemos, diz-se,
a era pós-positivista do Direito (ou a era do neoconstitucionalismo),
na qual predominam os conflitos principiológicos, que reclamam solução pela via
da 'ponderação de interesses'. Essa técnica de
decisão, alega-se, não exclui um princípio em detrimento de outro, mas apenas
reconhece sua maior preponderância num determinado caso concreto.
Ocorre que, no
final, os princípios acompanhados da expressão 'social'
quase sempre predominam. É
por isso que nossa Constituição está repleta de princípios liberais — como livre iniciativa, livre concorrência, propriedade privada etc. — que possuem uma carga normativa fraquíssima, tendendo a perder eventuais disputas pela via da ponderação de interesses quando confrontados com princípios sociais. Enfim, é mais um sintoma dessa cultura do intervencionismo no Direito. Muitos defensores de uma sociedade de mercado acreditam que é preciso haver intervenção do estado no que diz respeito aos "monopólios naturais". Como você enxerga isso? Thomas DiLorenzo, economista da nova geração da Escola Austríaca, termina um texto intitulado "O mito do monopólio natural" com a seguinte frase: "A teoria do monopólio natural é uma ficção econômica do século XIX criada para defender privilégios monopolísticos do século XIX, e não possui lugar em economias modernas do século XXI".
por isso que nossa Constituição está repleta de princípios liberais — como livre iniciativa, livre concorrência, propriedade privada etc. — que possuem uma carga normativa fraquíssima, tendendo a perder eventuais disputas pela via da ponderação de interesses quando confrontados com princípios sociais. Enfim, é mais um sintoma dessa cultura do intervencionismo no Direito. Muitos defensores de uma sociedade de mercado acreditam que é preciso haver intervenção do estado no que diz respeito aos "monopólios naturais". Como você enxerga isso? Thomas DiLorenzo, economista da nova geração da Escola Austríaca, termina um texto intitulado "O mito do monopólio natural" com a seguinte frase: "A teoria do monopólio natural é uma ficção econômica do século XIX criada para defender privilégios monopolísticos do século XIX, e não possui lugar em economias modernas do século XXI".
Um monopólio
natural, apenas para esclarecer, é aquele setor considerado fundamental para o
bem-estar e para a vida econômica e social de uma sociedade, e cujas principais
características são: apresentar significativas "externalidades" (uma
transação qualquer feita entre dois indivíduos irá afetar terceiros, positiva
ou negativamente), e exigir investimentos vultosos e de longo prazo de
maturação, específicos para cada atividade o que significa que, em teoria,
esses investimentos não são "recuperáveis", pelo menos no curto
prazo. Assim, os
principais monopólios naturais seriam aquelas áreas rotuladas como 1serviços de
utilidade pública1: fornecimento de energia elétrica, de telefonia fixa de
curta distância, de gás encanado, de água tratada e saneamento básico (esgoto),
de metrô e algumas ferrovias. Mesmo economistas
do mainstream já não mais abraçam mais essa tese do monopólio
natural como antes, de modo que agora já aceitam que empresas privadas
administrem esses setores. Tanto que os mercados tradicionalmente objeto desses
monopólios foram sendo 'privatizados' no mundo todo nas últimas décadas,
inclusive no Brasil.
Infelizmente,
porém, ainda predomina uma ideia de que esses setores, para saírem do regime de
monopólio e funcionarem em regime concorrencial, precisam de regulação
estatal, por mais paradoxal que possa ser essa afirmação. Consequentemente,
esses mercados sempre foram os mais regulados pelo governo. Há uma agência
reguladora (federal ou estadual) para cada um deles. O resultado,
sabemos, é desastroso: a empresa privada regulada entra em conluio com a
agência reguladora (o que a literatura econômica chama de 'captura
regulatória') e ambas passam a operar visando apenas seus interesses, e não o
dos consumidores. Consequentemente, os preços aumentam e a qualidade dos
serviços nem sempre melhora. E tal arranjo só é
possível exatamente porque a existência da regulação cria uma reserva de
mercado para essa empresa, com barreiras à entrada que eliminam a
concorrência potencial. A empresa não precisa ser eficiente, pois o estado já
lhe garantiu um monopólio para aquela área. Isso é o oposto de livre mercado.
Para piorar tudo,
tal arranjo opera sob controle de preços (os preços são estipulados pela
agência reguladora, o que dificulta o cálculo econômico racional) e sempre há
pacotes de socorro quando a empresa passa por dificuldades (que impedem o
funcionamento do mecanismo de lucros e prejuízos). O caso da Oi é o
mais recente. E o que é ainda
pior: a cultura do intervencionismo faz com que, na ocorrência desses
problemas, as pessoas peçam por mais regulação, e não o contrário. (Nota do Editor:
veja neste artigo a
maneira correta de se privatizar e desestatizar serviços de utilidade pública
considerados 'monopólios natrurais'). Qual a visão central de sua tese de doutorado sobre a atuação do CADE e a
legislação antitruste brasileira?
A tese apresenta
alguns fundamentos contra a legislação e as agências antitruste:
(i) a história que
nos contam sobre o assunto é mentirosa: leis e agências antitruste surgiram não
para proteger os consumidores e coibir abusos do 'poder econômico', mas
sim para proteger setores empresariais que estavam perdendo
mercado diante da crescente competição, mas que ainda eram fortes
politicamente:
(ii) a teoria
econômica que fundamentou o antitruste na sua origem é equivocada, partindo de
conceitos errados de monopólio e concorrência: usando modelos irreais, como o
de 'concorrência perfeita', essa teoria exacerba a
preocupação com as supostas 'falhas de
mercado' e ignora o fato de que monopólios são criados e
mantidos pelo próprio estado (todos os cartéis, oligopólios e
monopólios da atualidade se dão em setores altamente regulados pelo governo:
setor bancário, aéreo, telefônico, elétrico, televisivo, TV a cabo, internet,
postos de gasolina etc.). Para agravar, a
teoria desconsidera a inexorável realidade de que a concorrência é
um processo dinâmico e incerto de rivalidade e descoberta constantes,
que depende apenas da liberdade de entrada liberdade esta que quem mais
solapa é o próprio estado por meio de suas regulações que criam reserva de
mercado.
O resultado,
novamente, é conhecido: empoderamento do aparato burocrático estatal e desvio
de recursos e preocupações dos empresários em atender a essa burocracia, e não
aos desejos dos consumidores, como ocorre em uma economia verdadeiramente
livre. Muitos libertários têm dificuldade em relação a ideia de propriedade
intelectual, pois temos autores a defendendo (como Ayn Rand) e outros defendendo
sua abolição (Stephan Kinsella). A ideia de propriedade intelectual se
justificaria moralmente? A PI é necessária para possibilitar mais inovações em
algum setor? Inicialmente,
é preciso fugir desse dualismo libertários versus não-libertários em
qualquer tema relacionado à liberdade, até para evitar que
nossos argumentos sejam rechaçados por vício de origem, do tipo "ih,
lá vem o anarcocapitalista radical com suas ideias utópicas etc".
Ademais,
hodiernamente, a crítica à 'propriedade intelectual' está bem longe de ser algo
restrito a um grupo político ou ideológico. Dito isso, há duas
coisas que precisam ser destacadas nesse debate. Em primeiro lugar,
não existe 'propriedade intelectual', e sim monopólios intelectuais, e isso é
algo praticamente consensual hoje, inclusive entre os próprios defensores da
PI. Ideias e criações não são bens escassos, então essa tal PI nada mais é
do que criação de escassez artificial pelo uso da força estatal. Isso é uma
medida contra a propriedade real, e não em defesa da propriedade.
Afinal, se você não pode usar sua propriedade para simplesmente duplicar uma
ideia minha, isso significa que eu, o dono da propriedade intelectual,
expropriei de você a sua "real" propriedade. Em segundo
lugar, esses monopólios intelectuais, em vez de criarem incentivos à
inovação, acabam desestimulando-a, na medida em que restringem a concorrência:
o monopolista fica acomodado com o privilégio (muito longo, por sinal, como já
comprovaram inúmeras pesquisas empíricas), e os concorrentes ficam desencorajados
a investir em áreas já protegidas, com medo de represálias administrativas e
judiciais. Além disso, há uma
série de consequências não-intencionais, como a paralisação do brainstorming criativo
e a distorção na alocação dos gastos empresariais.
Enfim, argumentos
contrários aos monopólios intelectuais, especialmente nos dias atuais, quando
vivemos a era da internet, existem aos montes e são
absolutamente irrefutáveis, tanto do ponto de vista teórico quanto do
ponto de vista empírico. Existem, por exemplo, estudos de caso demonstrando que
setores sem imposição de PI são muito mais inovadores e criativos
(caso do mercado da moda, como bem explicado por Johanna Blakley em palestra disponível no TED) do que setores cuja execução do
PI é enorme. E repito: ser
contra a PI não é apenas uma excentricidade libertária, como muitos
dizem apressadamente, fugindo da discussão para esconder a incapacidade de
repensar esse assunto. O melhor trabalho que já li contra a PI, por exemplo,
foi o livro 'Against intellectual monopoly', dos economistas Boldrin e
Levine, e até onde sei, salvo engano, eles não são libertários. Por fim, diante de tantos problemas no ambiente jurídico brasileiro, o
que você recomendaria para alguém que está prestes a iniciar o curso de
direito? Se esse alguém é
um liberal ou libertário que deseja se contrapor a essa cultura do
intervencionismo a que me refiro, recomendo que siga sua vocação e conclua o
curso numa boa instituição, já que, sem isso, infelizmente, não poderá
trabalhar na área (afinal, estamos falando da profissão mais regulamentada que existe,
havendo uma guilda corporativa fortíssima, a OAB, para manter essa reserva
de mercado a todo custo). Em contrapartida,
é fundamental que essa pessoa procure se educar por conta própria, e a
internet está aí para isso. Há uma infinidade de material (artigos, livros,
aulas, palestras, podcasts etc.) disponível facilmente para um estudante
autodidata, interessado e disciplinado. Se, porém, o
aluno ficar restrito ao programa oficial da faculdade, imposto
e controlado pelo MEC, corre sério risco de se tornar um intervencionista.