Há
uma tendência atual em se acreditar que os filósofos são iguais a quaisquer
outros intelectuais quando se trata de explicar e avaliar situações cotidianas
de seu próprio tempo. Influenciados por “estudos culturais” e “estudos de
gênero”, ou ainda presos a esquemas marxistas que nunca foram os de Marx,
acadêmicos atuais buscam criar frases de efeito a respeito da filosofia. Dizem
coisas como “a razão em Descartes é européia, branca, masculina e adulta”. E
com isso acreditam ter descoberto o que seria a “chave da filosofia”. Algo que
que ela própria, filosofia, jamais teria conhecido.
É claro que os acadêmicos que agem desse modo
são, na verdade, desconhecedores da filosofia. Todavia, essa moda é tão forte –
motivada pelo excesso de divisão de tarefas acadêmicas e áreas de estudos – que
acaba aprisionando até mesmo professores de filosofia que tiveram alguma
formação razoável. Esses professores imaginam que poderiam encontrar em grandes
filósofos frases injustificadamente cruéis e machistas. Então, há regozijo
quando acreditam que descobriram em um grande filósofo aquilo que demonstraria
que, como qualquer outro, o grande homem é “filho de seu tempo”, e isto no pior
sentido da expressão.
Há
uma passagem famosa de Kant que faz sucesso entre acadêmicos dessa linha.
Trata-se daquela que diz que seria mais correto para a mulher morrer lutando
contra o seu estuprador do que conseguir passar pelo estupro sem perder a vida
e, então, ter de se matar depois.[1] Não raro, os scholars citam tal passagem
para extrair algo que poderia ser a evidência da existência de um tipo de
machismo Kant. Ou pior: tal afirmação nada seria senão a confirmação da
perversidade de quem adora culpar as vítimas, deixando intocável o
criminoso.[2]
Não
descarto a possibilidade de que Kant tenha sido um “homem de seu tempo”,
especificamente nisso. Todavia, caso desejarmos dispensar essa possibilidade,
eu penso que há condições e elementos. E essa é a marca do grande filósofo: ele
pode tropeçar na história e chafurdar na lama da geografia, mas, ao fazer
filosofia, ele dá instrumentos para que pessoas do tempo dele, e talvez ele
mesmo, consigam explicações racionais que não são vítimas do tempo e do espaço
de modo fácil. E Kant é sem dúvida grande filósofo – também nesse sentido
específico que exponho.
A
situação do estupro é significativa nesse caso.
O
que ocorre? Um homem está prestes a estuprar uma mulher, e não há mais ninguém
por perto. O que resta da ética ali, naquele episódio, nada mais? Há uma chance
da situação, por pior que seja, revelar algo ainda digno? Uma boa parte das
pessoas coloca todos os olhos sobre o estuprador. É como se ele, sendo o agente
do estupro, também fosse o único agente ali naquela situação. Acreditam que só
há um modo da situação ainda ter um desfecho moral. Esperam que o estuprador
fique com dó, que “algo de humano” apareça nele e, enfim, que ele não vá
adiante. Diferentemente, Kant não olha para o estuprador. Ele sabe que dali
nada virá de digno. Para ele, o estuprador está, desde o início, fora do campo
ético-moral. Mas o caso não está perdido. Kant olha para a mulher e acredita
que mesmo naquela situação horrível é ela que pode lhe dar uma última coisa
digna. Ela pode cumprir com a legislação máxima do Iluminismo: não se deixar
dominar pela força que não seja a de sua própria vontade, comandada única e
exclusivamente pela sua razão. Este é o lema do Iluminismo do qual Kant não foi
só um teórico, mas também um arauto. E então a mulher luta com o estuprador.
Não cede. Luta até o fim e, derrotada ou não, ela dá a vitória para a ética –
para a ética iluminista kantiana: que ninguém faça o outro de meio, e somente
de fim. O estuprador pode vencer a luta, mas o fato dele cumprir seu objetivo,
não faz a ética sair derrotada. O episódio não morre sem que brote dele um
canto de vitória da ética. Pois a vontade racional do outro não é dobrada e, portanto,
o outro (a mulher) não é usada como meio – a não ser como cadáver. Mas, como
cadáver, ela já não tem vontade ou razão.
Qual a crueldade nisso? Qual o machismo nisso?
A situação de estupro é cruel. Mas Kant não a está apoiando de modo algum. Caso
se entenda a filosofia de Kant, não vejo maneira de falar que ele foi machista
ou cruel. Kant
não está lá no local, no momento do estupro, e então não pode fazer algo para
tentar evitar o estupro. Não há como ligar para 190. E Kant não advoga que o
homem não tenha de ser severamente punido. Kant diz que apesar do ato, houve
uma vitória da ética, pois a razão humana, que não deve seguir outra coisa que
não ela mesma, assim agiu. A razão da mulher não cedeu as forças irracionais do
homem. Que se entenda bem: a questão não é a mulher evitar o estupro por causa
do estupro em si, e sim evitar que sua vontade racional seja subjugada. No
ensaio “Resposta à pergunta ‘O que é o Esclarecimento?’” Kant advoga a idéia de
que quem age segundo sua própria razão pode até seguir as tradições, a Igreja,
o rei etc., mas não sem antes avaliar as ordens destes pelo seu próprio crivo
racional. Agindo assim, comporta-se como alguém que é esclarecido ou está se
esclarecendo; e se não age assim, talvez seja por preguiça ou por medo. Nesse
ensaio sobre o Esclarecimento, ele diz que quase todo o gênero feminino cai sob
a situação de menoridade, que é aquela de quem não usa autonomamente de sua
própria razão. Ou por medo ou por preguiça, as mulheres teriam preferido agir
segundo a determinações alheias. Mas, nos textos tardios de ética, Kant parece
querer dar um contra-exemplo, mostrando que ele espera da mulher uma atitude
que não implique nem em preguiça nem em medo. Também ela pode se portar como
fora da condição de menoridade.
O
argumento contra Kant, que às vezes me apresentam, me parece fraco. Alguns
dizem que a ética triunfa por meio de um preço muito alto, ou seja, a vida da
mulher. Todavia, na ética de Kant, o preço é alto em todas as situações, não só
nessa, a do estupro. Todos os seus exemplos implicam em sacrifícios. É uma
ética do dever. E o dever é tomado como correto se pode ser universalizado. É
uma ética cujo princípio máximo é formal e, portanto rigoroso. O imperativo
categórico é assim expresso na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de
1785. o Age como se a máxima de tua
ação devesse tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza.
E
no âmbito moral, prático, pode ser visto dessa maneira: o Age de tal modo que possas usar a
humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como
um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio. Quando
você segue uma regra que você acredita que é um dever de consciência, ela ainda
não é uma regra ético-moral; você ficará sabendo se ela é uma regra ético-moral
se tal regra puder ser universalizada como uma lei natural, como um ditame
aceito e executado por toda a humanidade. A
mulher que vai ser estuprada e que luta, não só vai manter sua vontade
(iluminista, esclarecida) de não se deixar levar pela bestialidade do opressor
ou pelos desígnios traçados pelo homem, mas, também estará cumprindo com os
princípios máximos da ética kantiana. Ela não pode “sair pela tangente” e
negociar com o estuprador a partir de imperativos hipotéticos, que seguem não o
dever, e sim a prudência e a astúcia. Isso a manteria viva, talvez, mas o
episódio não teria nada de digno – e a ética teria se esvaído totalmente.
Caso
ela diga, “OK, você me estupra e, com isso, em troca de não me matar, eu não só
não conto para ninguém como facilito sua vida para estuprar outras pessoas,
minhas amigas bobinhas que eu poderei trazer até o seu covil”. Mesmo que ela
esteja mentindo, e não vá entregar ninguém para ele, ela já cedeu. Ela fez algo
que não gostaria de ver universalizado. Algo que não pode ser universalizado.
Ninguém aceitaria universalizar a seguinte regra: diante do estupro, “relaxe e
goze” contanto que o estuprador siga o lema “estupra, mas não mate”. Ainda que
todo mundo conte com as possibilidades dessas duas frases para escapar de um
estupro, ninguém teria a coragem de dizer que essa norma deveria ser
universalizada, deveria se tornar a regra universal da humanidade para lidar
com o estupro.
Cada um de nós pode dar o seguinte conselho
para uma filha, irmã, mãe ou esposa: caso seja atacada por um estuprador,
primeiro, “relaxe e goze”, e faça de tudo para agradar o homem nessa hora, de
modo que ele cumpra a parte dele, ou seja, que ele siga o “estupra, mas não
mate”. Mas nenhum de nós assumiria que esse conselho dado a quatro paredes é o
que queremos que valha para a humanidade toda. Pois se universalizarmos esse
tipo de procedimento, significa que pensamos em tratar o estupro não mais como
um crime, e sim como uma situação que, ainda que violenta, vai ser tratada
pelos envolvidos na situação, e a única coisa que a lei poderá fazer, então,
será fornecer um manual com sugestões para que a mulher possa conseguir o menos
pior em tal situação. O manual pode conter duas frases, uma para a mulher e
outra para o estuprador. Para a mulher, “relaxe e goze”; para o estuprador,
“estupra, mas não mate”.
Kant
e todos os nós, kantianos ou não, não podemos aceitar a universalização de uma
norma que seja a de tratar o estupro como um problema de cada um. Não podendo
universalizar a situação que seria criada por uma tentativa de relacionamento
“mais íntimo” entre a vítima e o opressor, não podemos adotar tal postura como
um dever ético. Seria um dever, sim, o de preservar a vida. Mas um dever não
eleito a dever ético.
Dr. Paulo
Ghiraldelli Jr