A obra de Robert Nozick "Anarquia, Estado e Utopia", de 1974,
trata-se de um tratado teórico sobre as funções do Estado Moderno, o qual faz
uma defesa ética dos ideais liberais. A publicação do livro ocorre três anos
após a publicação de "Uma Teoria da Justiça" de John Rawls, e é uma
clara reação a esta publicação, que havia tornado-se o mainstream da filosofia
política contemporânea.A respeito disso, diz Nozick:Uma Teoria da Justiça é uma obra de filosofia política e
moral poderosa, profunda, sútil, de grande fôlego, sistemática, à qual nada se
pode comparar desde os escritos de John Stuart Mill, quando muito. É uma fonte
de idéias luminosas, integradas num todo cativante. Os filósofos da política
hoje têm ou de trabalhar no seio da teoria de Rawls ou de explicar por que não
o fazem. [Anarquia, Estado e Utopia, Cap. 7, página 228]. O intuito de Nozick é
defender um Estado mínimo, sem possibilidade de intervenção por meio de
políticas de distribuição, tendo como alicerce a propriedade privada. Sua
proposta segue um rumo oposto à teoria de Rawls, que defende um alargamento das
funções do Estado para que este possa intervir sobre os indivíduos e aplicar
sistema de distribuição de renda. Dados estes tão diferentes pontos de vista,
pode-se definir Nozick como um liberal e Rawls como um sócio-democrata.
Anarquia
Nozick levanta uma questão na primeira parte do livro que, segundo ele,
deve ser feita antes de se analisar uma sociedade: “O Estado é realmente
necessário?” Ele propõe uma experiência mental que consiste em analisar o
estado de natureza de Locke, no qual não há sociedade civil, apenas direitos
morais pré-políticos. Estes direitos são decorrência dos direitos de
propriedade sobre si mesmo, sendo assim, o individuo tem total liberdade de
fazer o que bem entende com seu corpo, sua vida e seus talentos pessoais, desde
que estes não firam os direitos dos demais. Mas partindo do estado de natureza,
com indivíduos dotados de direitos concebidos em termos de autopropriedade,
seria necessário o Estado?
Mas o que aconteceria se alguém violasse a propriedade individual de
outro? A vítima teria de fazer justiça com suas próprias mãos, no entanto,
haveria alguns casos onde poderia existir uma desvantagem de um indivíduo
perante o outro, como por exemplo, quando há uma deficiência física que poderia
impossibilitar a vítima de reagir de forma adequada. Desta maneira, pode-se
perceber que o estado de natureza é uma ambiente muito instável. Aqui Locke defende a idéia de que os
indivíduos celebrariam um contrato social que seria capaz de livrá-los desta
instabilidade. Nozick, por sua vez, segue por um caminho alternativo, por meio
de um mecanismo de "mão invisível", que seria impulsionado por
indivíduos proprietários de si mesmo, o autor chega a outras conclusões.
Através deste mecanismo, começariam a surgir associações de proteção,
compostas por indivíduos que teriam por objetivo garantir sua própria
segurança. Como nem todos os indivíduos seriam capazes de prestar serviços
nestas associações, por falta de tempo ou incapacidade física, haveria uma
profissionalização e uma divisão do trabalho, acarretando no surgimento de
empresas prestadoras de serviço de proteção. Estas diversas prestadoras, pela
lógica do mercado, iriam competir entre si, e as mais eficazes sobreviveriam
até que se estabelecesse uma associação que tornaria-se dona do monopólio de
violência. A presença desta associação, esclarece Nozick, define o surgimento
do que o autor chama de “estado ultramínimo”, onde os indivíduos
encontrariam-se já na presença de um estado civil.
Mas como esta associação teria um dever moral de compensar todos os
indivíduos que não fossem seus clientes, ela prestaria o serviço de proteção a
todas as pessoas dentro de uma área geográfica, delimitada por fronteiras. Aqui
surge o Estado mínimo, caracterizado por um grupo de indivíduos que vivem numa
determinada região delimitada por fronteiras e encontram-se sob a proteção de
uma entidade que detêm o monopólio do uso da violência. O Estado mínimo tem
apenas as funções de punir as violações de direito entre os indivíduos deste
espaço, como o uso indevido da força, o roubo, a fraude e o não cumprimento dos
contratos, e de defender os indivíduos que nele vivem de agressões de
estrangeiros. Para Nozick, o Estado mínimo seria uma solução mais adequada do
que a pura e simples anarquia, pois ele possibilitaria de maneira eficaz a
defesa dos direitos individuais tornando possível transcender a instabilidade
presente no estado de natureza.
Estado
Nesta seção do livro, Nozick vai atacar a teoria distributiva de Rawls,
defendendo a idéia de que não seria necessário um Estado mais extenso que o
mínimo, lançando a sua teoria da justiça de caráter ultraliberal denominada de
“teoria da titularidade”.A teoria da titularidade diz respeito às propriedades
e posses dos indivíduos, e seria possível, segundo o autor, demonstrar quais
destas propriedades podem ser possuídas por um indivíduo de forma justa. Para
Nozick, o direito de posse por parte dos indivíduos advém de três aspectos; a
“justiça na aquisição”, a “justiça na transferência” e a “retificação da injustiça”.O
conceito de justiça na aquisição afirma que qualquer pessoa teria
direito a posse de uma aquisição inicial desde que, por está posse, não
atacasse os direitos individuais de outros. Assim, seria moralmente incorreta a
posse por meio de roubo, fraude ou uso da força.
No entanto, a maior parte das posses dos indivíduos são oriundas de
processos de transferências, logo, estas serão justas desde que tenham sido
conscientes e voluntárias e não tragam nenhum tipo de prejuízo a ninguém. Estes
princípios então devem ser respeitados nos processos de compra e venda, herança
e outras transferências, e ainda que, ao longo do tempo, gerem uma diferença
social entre indivíduos, não há nada que ponderar a respeito destas. No
entanto, caso alguma transferência ocorra por um processo que viole os direitos
individuais, como um furto, seria necessária a retificação da injustiça,
ou seja, os indivíduos lesados ou seus descendentes deveriam ser ressarcidos
por quem cometeu o delito (ou seus descendentes).
Nozick afirma que o principal aspecto da teoria da titularidade frente à
teoria distributiva de Rawls é que o conceito rawlsiano de justiça como
equidade fere o imperativo categórico kantiano na fórmula do “fim em si”, pois
os mais favorecidos seriam tratados instrumentalmente, segundo o autor, com o
Estado os obrigando a contribuir para a melhoria da situação dos menos
favorecidos, o que acaba por não
respeitar suficientemente os indivíduos e a sua autopropriedade.
Um famoso contra argumento contra a teoria distributiva de Rawls é
análise do caso de Wilt Chamberlain. Que é um famoso jogador de basquete
norte-americano. A sociedade em que vive distribui a riqueza segundo a teoria
distributiva de Rawls. A esta distribuição de riqueza vamos chamar D1. Depois de
várias propostas, Wilt Chamberlain decide assinar o seguinte contrato com uma
equipe: nos jogos em casa, recebe 25 centavos por cada bilhete de entrada. A
emoção é grande. Todos o querem ver jogar. Chamberlain joga muito bem. Vale a
pena pagar o bilhete. A temporada termina e 1 milhão de pessoas assistiu aos
seus jogos. Chamberlain ganhou 250000. O rendimento obtido é bem maior que o
rendimento médio. Gera-se assim uma nova distribuição de riqueza na sociedade
em questão, a que vamos chamar D2.
Por que razão este caso é um contra-exemplo ao princípio distributivo?
Dado que cria uma enorme desigualdade, Nozick pergunta por que razão esta nova
distribuição de riqueza é injusta. Na situação D1, as pessoas tinham um
rendimento legítimo e não havia protestos de terceiros para que se
redistribuísse a riqueza. Nenhuma questão se levantava acerca do direito de
cada um controlar os seus recursos. Depois as pessoas escolheram dar 25
centavos do seu rendimento a Chamberlain e gerou-se a distribuição D2. Haverá
agora lugar a reclamações de terceiros que antes nada reclamavam e que
continuam a ter o mesmo rendimento? Que razão há para se redistribuir a
riqueza? Que razão tem o estado para interferir no rendimento de Chamberlain
cobrando-lhe impostos elevados?
Para Nozick não há nenhuma razão, por meio deste exemplo fica claro que
para o autor a desigualdade de renda é algo natural dentro da sociedade, já que
as pessoas são livres para despenderem seus gastos de acordo com seus gostos,
assim, os prestadores de serviço mais qualificados, sempre lucrariam mais. Uma
intervenção do Estado para confiscar parte de seus ganhos para distribuir ao
mais desfavorecidos acabaria por desmotivar o indivíduo a se tornar mais
eficiente.Nozick também coloca sua teoria da titularidade contra o
utilitarismo, que tem como objetivo a maximização do bem-estar social. Sua
crítica consiste em afirmar que a justiça depende do que aconteceu no passado e
não de um resultado a ser obtido no futuro, como propõe o utilitarismo. Nesta
situação, a teoria da titularidade se sobressai graças ao seu aspecto de
retificação da injustiça.Além disso, o principal valor contido nesta teoria,
segundo Nozick, é o de que ela não pretende criar nenhum padrão político, já
que estes acarretariam na intervenção da liberdade dos indivíduos por parte do
Estado.
Utopia
Nozick apresentou o Estado mínimo como uma proposta para ser encarada de
maneira utópica. Ele não afirmou que as pessoas devem necessariamente viver
dentro da sociedade, pelo contrário, sua teoria permite que as pessoas levem
vidas muito diferentes. Aqueles que possuem interesses em comum podem criar
comunas e levarem uma vida digna, desde que não afetem os direitos individuais
de alguém.Vale ressaltar que Utopia é uma palavra de origem na tradição esquerdista,
no entanto, aqui ela deve ser encarada como uma propriedade da teoria liberal
de Nozick, portanto, o liberalismo que ele propõe deve inspirar todos aqueles
que pretendem viver em uma sociedade livre.
Considerações finais
É necessário ressaltar que esta obra não é um tratado político, mas sim
uma defesa ética dos ideais liberais, como fica claro no seguinte trecho: “Minha ênfase em conclusões que
divergem das crenças da maioria dos leitores pode induzi-los à idéia errônea de
que este livro é uma espécie de tratado político.” [Anarquia, Estado e
Utopia, Prefácio, página 12].Isto torna-se necessário devido ao fato de que
muitas das críticas atribuídas a Nozick devem-se ao fato de que seus opositores
afirmam que ele esteja tentando criar uma nova agenda política, quando na
verdade apenas procura demonstrar o caráter imoral da intervenção estatal,
presente na atual agenda política.Nozick traz de volta ao debate as
posições liberais clássicas que primam pela liberdade como uma característica
natural ao ser humano e como maior bem que possui, fazendo com que qualquer
ação do Estado sobre um indivíduo possa ferir sua liberdade. É isto que destaca
a importância de seu trabalho, que é o de revelar uma demanda ainda existente
dentro da sociedade, com isso enriquecendo o debate moderno de justiça.
Bibliografia
Robert Nozick; Anarquia, Estado e Utopia; 1974