Saber se o Estado tem legitimidade moral para intervir, coercitivamente, na
distribuição de bens e riquezas na sociedade, têm sido um dos principais temas
da filosofia política contemporânea. Isto porque, tal como sustenta alguns teóricos liberais,
para
produzir igualdade entre os cidadãos, o
Estado, necessariamente,
terá de interferir na esfera privada do indivíduo. Nozick, afirma que
os direitos individuais são pré-políticos e, portanto, cada indivíduo é dono de si
próprio. Isso
implica dizer que o direito à vida, o direito à propriedade no sentido mais
estrito, e à
liberdade de fazer o que quiser consigo mesmo, com o seu corpo e os seus
talentos, são sagrados.
Os indivíduos têm
direitos, e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer contra eles (sem
violar seus direitos). Esses direitos são tão fortes e e têm tamanho alcance
que levantam a questão de saber o que o Estado e seus servidores podem fazer,
se é que podem fazer alguma coisa. Que espaço os direitos individuais deixam
para o Estado? (NOZICK. 2011, p.
1)
Ao afirmar que os indivíduos têm
direitos, e que há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer sem violá-los,
Nozick está defendendo, como liberal que
é,
que os direitos individuais limitam o âmbito de ação estatal. Assim sendo, Nozick propõe uma
concepção de Estado, na qual as funções estatais fiquem
restritas à proteção dos direitos individuais (Cf. Nozick, 2011, p. 32). Para Nozick, qualquer proposta de Estado
mais abrangente viola este limite moral.
Contudo, é possível pensar num Estado mais amplo, mesmo a
partir do viés liberal. O exemplo clássico é a teoria da justiça proposta por
John Rawls, em Uma Teoria da Justiça (TJ).
Para
Serge-Christophe Kolm (2000), John Rawls consegue reunir em sua teoria, de
forma harmoniosa, aspectos fundamentais que definem os Estados liberais
democráticos, tais como: o respeito aos direitos humanos e aos direitos civis
de cada indivíduo, através da ideia de ajuda aos mais pobres. Ao contrário de
Nozick que defende a ideia direitos individuais como limitadores do Estado, Rawls
construiu uma ideia de justiça onde a relação entre o indivíduo e o Estado é
concebida por meio de princípios que surgem em uma “posição
contratual inicial”. Ou seja,
o papel do Estado não é definido a
priori, mas sim por meio de um processo construtivista, entre pessoas racionais,
livres e iguais, que podem, em hipótese, desejar um Estado que corrija a
desigualdade na sua fonte. Sobre a relevância
do trabalho de Rawls, Kolm afirma.
A mais célebre
obra contemporânea sobre ética social é Uma Teoria da Justiça, de Rawls,
livro que acabou por tornar-se um fenômeno social. [...] Além disso, se por um
lado, os princípios de justiça propostos são realmente clássicos por
consistirem, grosso modo, nos inalienáveis direitos humanos e civis que definem
os Estados liberal-democráticos, na ideia de ajudar os pobres primeiro, que
historicamente define as concepções de esquerda (ou cristãs), e no
reconhecimento dos efeitos do desincentivo da redistribuição, que é um
lugar-comum nos argumentos políticos e na economia, por outro lado,o modo como Rawls
justifica essas concepções é, ao contrário, extremamente original, a despeito
da sua modesta despretensão (KOLM. 2000, p.211)
Nozick também partilha
da mesma opinião de Kolm.
Uma análise mais detalhada
da recente contribuição de John Rawls ao debate sobre a justiça distributiva
pode lançar mais luz sobre o assunto. A Theory of Justice é uma poderosa
obra sobre filosofia política e moral, profunda, perspicaz, de grande envergadura
e sistemática, possivelmente sem paralelo desde os escritos de John Stuart
Mill. Trata-se de um manancial de ideias luminosas, reunidas de modo que forme
um conjunto fascinante. Desde sua publicação, os filósofos políticos são a
trabalhar dentro dos limites da teoria de Rawls ou, então, explicar por que não
o fazem (NOZICK. 2011, p. 23).
Nesta obra, John Rawls
visa estabelecer princípios que devem nortear a justiça social e tenta
demonstrar como isso refletira na sociedade. A teoria rawlsiana toma o conceito de equidade como um elemento ético
essencial para balizar o
agir das instituições que compõe as estrutura básica da sociedade, cuja
principal delas é o Estado. Para Rawls, cabe
a
essas instituições o dever moral de minimizar as discrepâncias sociais, em prol do bem-estar de
todos. A ideia de
justiça proposta por Rawls se antecipa às
instituições, e a sua real efetivação depende não
apenas do Estado, mas também dos
atores sociais que participam de uma única
célula,
chamada de posição original. Na posição original, os participantes escolheriam os princípios de justiça sem qualquer intenção de adquirir vantagens ou benefícios sobre os
demais, os princípios oriundos deste consenso teriam como fim último
a justiça social. Deste modo, a sociedade poderia alcançar uma situação
de igualdade e liberdade entre todos participantes da esfera social.
O que está em pauta até aqui, continua sendo a concepção
de liberdade individual. Enquanto para Nozick, a liberdade individual é
anterior ao Estado e limitador do mesmo, para Rawls a liberdade do indivíduo
acontece justamente pelo fato dele ter a possibilidade de deliberar acerca do
modelo de Estado que deseja. Para compreender a crítica de Nozick à concepção
rawlsiana, temos que primeiro entender o construtivismo moral proposto por
Rawls. O contraste entre os dois autores será fundamental para alcançarmos
maior clareza quando tratarmos do ponto central desta pesquisa.
Para compreender o que estamos discutindo, precisamos
distinguir dois conceitos que são básicos para o ponto, são eles: o conceito de
justiça e o de direito positivo. A distinção que proponho é a mesma de Hans
Kelsen. Quando menciono o conceito de justiça estou pensando no processo, ou no
momento anterior, que dá origem e validade aos direitos positivos. Já o direito positivo, nada mais é do que as
normas elaboradas por uma determinada sociedade a fim de regular e organizar a
vida em sociedade.
O conceito de justiça deve
ser distinguido do conceito de direito. A norma da justiça indica como deve ser
elaborado o direito quanto o seu conteúdo, isto é, como deve ser elaborado um
sistema de normas que regulam a conduta humana e que são global e regularmente
eficazes, ou seja, o direito positivo. Visto a norma da justiça prescrever um
determinado tratamento dos homens, ela visa - como já mostrou - o ato através
do qual o direito é posto (KELSEN. 1979, p.89).
O
construtivismo, na filosofia prática, pode ser definido como um modelo de
abordagem para questões
morais, tanto com o intuito de explicitar pressupostos, como organizar, demonstrar ou tornar
coerente um conjunto de valores e preceitos morais, ou seja, é um modelo de análise. Assim sendo, pode-se dizer que o
construtivismo tem o intuito de argumentar quanto à validade dos valores e dos preceitos propostos por uma determinada teoria. Numa teoria moral, o construtivismo
apresenta-se como um modelo de justificação
(Cf. FERREIRA. 2005 p. 8). A
moralidade, a partir desta visão, é
compreendida como uma resposta da racionalidade humana frente a problemas
práticos. Os princípios morais, em
uma teoria construtivista, são vistos como o produto de um
procedimento, de uma construção da razão em seu uso prático. Isto é, a
moralidade não é tomada como um conjunto de objetos dados – um fato da razão –
onde os princípios morais seriam, simplesmente, “conhecidos” pela razão
teórica, como no caso do realismo moral (Cf. KORSGAARD. 2003, p. 116).
Em O
Liberalismo Político (LP), Rawls a fim de esclarecer sua concepção
de construtivismo recorre a uma breve comparação com outra perspectiva
metaética, o realismo moral. De maneira geral, Rawls define o realismo moral
como uma concepção na qual os princípios morais dizem respeito a uma ordem
independente de valores, não condicionada à inteligência humana, mas que, no
entanto, pode ser intuída pelo indivíduo (Cf. RAWLS. 2000. p.136-137). Numa teoria construtivista os princípios
morais ou políticos não são intuídos ou descobertos, mas, representados como
resultado de um procedimento de construção. Neste procedimento, os agentes
racionais, estão devidamente posicionados em uma situação adequada para escolha
dos princípios, no caso rawlsiano os princípios de justiça. Os princípios decorrentes do procedimento de deliberação são frutos de uma razão
prática.
Podemos observar que Rawls não se preocupa em
negar ou discutir a possibilidade de um “reino de valores” independente, apenas
se posiciona de maneira que, ainda que fosse possível um acesso privilegiado a
verdades morais, isso não garantiria a validade objetiva destes princípios para
todos numa sociedade (Cf. RAWLS. 2000. p.138-139). Para Rawls, é muito mais seguro e adequado que a construção dos princípios de justiça que servem de parâmetro para as
instituições e para o Estado, e garantem a liberdade do indivíduo, sejam
oriundos de uma deliberação racional onde todos podem dar seu consentimento.
Esses princípios seriam válidos para todos na sociedade justamente por terem sidos elaborados em uma situação
adequada. Uma vez que os princípios de justiça são elaborados numa situação
adequada, tais devem ser considerados como imperativos categóricos,
pois, para um construtivista, o que justifica a validade universal dos
princípios é o próprio procedimento.
Portanto,
é correto dizer que o construtivismo rawlsiano busca, através de um
procedimento de construção adequado, justificar a adoção de princípios de justiça que posteriormente serão aplicados à estrutura
básica da sociedade. A objetividade moral para o construtivismo se dá por meio de um
processo corretamente construído e aceitável por todos, livremente. Diferente
do que faz o realismo moral, onde, os princípios morais são apreendidos por meio de “intuições racionais”. É possível dizer, a
princípio, que a principal diferença entre Nozick e Rawls está na maneira pela
qual os princípios morais que orientam a vida social são colocados.
Com base no liberalismo
proposto por Rawls, eu posso pensar num processo deliberativo onde indivíduos
racionais, livres e iguais podem, por meio de consenso, chegar a princípios
morais que deixem mais espaço para intervenção estatal. Em Nozick não há esta
possibilidade, os direitos individuais não são frutos de um consenso, são
inatos, inalienáveis, anteriores ao Estado e, portanto, limitador da ação estatal.
Em Rawls, a ideia de um Estado mediador dos conflitos lociais e redistributivo
não implica, necessariamente, na ideia de violação moral, pois, pode ser o caso
de que os princípios de justiça oriundos do processo de deliberação racional
ofereçam legitimidade para uma política de distribuição de renda, a fim de
diminuir as desigualdades sociais e econômicas.
Na segunda parte
de AEU, Nozick se dedica a refutar a ideia de justiça distributiva de Rawls.
Para Nozick, uma sociedade livre não deve contar com um mediador de trocas
voluntárias e nem ter um distribuidor central de riquezas. Nozick, rejeita o
construtivismo moral proposto por Rawls, e se aplica a contrapor a ideia de
que um consenso social tenha legitimidade para produzir novos direitos. A teoria dos direitos de Nozick concentra-se em explicações, condições e justificativas bastante compatíveis
com a tradição
filosófica de John Locke.
Uma vez que tanto
as considerações da filosofia política quanto as de teoria política explicativa
convergem para o estado de natureza de Locke, começaremos por ele. Só
mencionaremos alguma divergência entre a nossa concepção e a de Locke quando
ela for relevante para filosofia política e para o nosso debate sobre o Estado
(NOZICK. 2011,p.10).
Em Nozick, tantos os direitos e como a
liberdade individual é de origem ontológica,
isto é, está associada à natureza do ser humano. A concepção ontológica ou existencial,
também é conhecida como jusnaturalismo. Norberto Bobbio, afirma que o jusnaturalismo, é uma concepção segundo a qual o ‘direito natural’ (ius naturale) existe e pode ser conhecido, ou seja, o jusnaturalismo defende a
existência de um sistema de normas, de conduta intersubjetiva diverso do sistema
constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). (BOBBIO, 1992,
p. 655). Hans Kelsen, em A Justiça e o Direito Natural (1979), salienta que
sobretudo do ponto de vista da doutrina jusnaturalista os direitos positivos
são válidos apenas se corresponderem a direitos naturais, constituídos de um
valor de justiça absoluto.
Se pressupomos um tal direito natural, então uma norma do
direito positivo que o contradiga não pode ser considerada válida. Somente
podem valer as normas do direito positivo conformes ao direito natural. E se a
norma de um direito positivo apenas vale na medida em que corresponda ao
direito natural. É esta efetivamente a consequência da doutrina jusnaturalista
que, ao lado ou por cima do direito positivo, afirma a validade de um direito
natural e, ao proceder assim, vê neste direito natural o fundamento de validade
do direito positivo (KELSEN. 1979, p. 6).
Serge Christophe Kolm, em Teorias
Modernas da Justiça (2000), ao falar sobre as diferentes razões para se
valorizar a liberdade, vai citar justamente a concepção ontológica de
liberdade. Segundo Kolm, há uma grande tradição no pensamento filosófico que
faz da liberdade a essência do homem. Esta tradição inclui autores como
Rousseau, Kant, e Hegel (Cf. KOLM. 2000, p. 54). A ideia é de que a liberdade
não seria apenas uma propriedade da natureza humana, mas sim, a matéria da qual
o ser do indivíduo é constituído. Em termos clássicos, a liberdade é a essência
da existência humana. A não-liberdade, portanto, é a negação da humanidade e a
redução da pessoa a uma coisa (KOLM. 2000, p. 55).
Seguindo esta linha de
pensamento, facilmente percebe-se que a diferença entre Rawls e Nozick.
Enquanto para Rawls, os direitos individuais são oriundos de um processo
deliberativo, em Nozick, os direitos decorrem exclusivamente da essência humana. Assim sendo, para
ele, um princípio de justiça do mais alto valor político para sociedade é
aquele se apresenta com base num sistema moral, em que a liberdade individual
seja o valor supremo. A ideia de liberdade presente em Nozick, é de caráter
puramente negativo.
A segunda justificativa de Nozick para
se contrapor ao pensamento de Rawls, decorre justamente da ideia negativa de
liberdade, é o argumento da inviolabilidade do indivíduo. Para
Nozick, os direitos individuais, que são inseparáveis da existência e da manifestação humana, só podem ser concebidos como
imperativos quando o objetivo for constranger ou limitar o escopo de ações que os sujeitos
podem empreender uns em relação aos outros, ou em relação às suas propriedades. Isto é, de maneira negativa. Em Nozick,
a proteção dos direitos individuais se dá por meio de restrições indiretas,
tais restrições são
anteriores aos objetivos finais de cada um, e refletem o
princípio kantiano de que os indivíduos são fins e não simplesmente meios, proibindo que os indivíduos sejam usados como simples meio para realização
de fins que não recebe seu
consentimento. Em outras palavras, as restrições indiretas não proíbe qualquer ação desde que esta não viole certas restrições, isto é, todo indivíduo é livre para buscar seus objetivos finais, com quanto que não viole o direitos individuais dos outros (Cf. NOZICK,
2011, p. 37).
Para esclarecer o sentido em que emprega a relação de fins e meios em sua
obra, Nozick usa como exemplo a utilização de uma ferramenta. Nozick afirma que
não há restrições indiretas quanto ao modo de se usar uma ferramenta, e sim
restrições morais no que se refere aos propósitos em que a utilizamos (NOZICK,
2011, p. 38). Apenas a título de ilustração, poderíamos citar o debate atual
que ocorre, em parte da sociedade civil brasileira, acerca da legalização do
porte de armas. O pensamento nozickiano, presente em AEU, nos daria base para
afirmar que não cabe ao Estado restringir o porte de armas nem controlar o modo
e a finalidade daquele que possui um armamento, desde que a utilização do
armamento não viole os direitos naturais do outro. Isto é, cabe ao Estado impor
restrições, por meio de leis, ao uso das armas de fogo em relação aos demais
indivíduos, e punir estes quando a utilização violar os direitos individuais
dos outros.
Pois bem, é importante continuar e aprofundar a linha de raciocínio
desenvolvida até aqui para compreender o tamanho do distanciamento que há entre
os autores em questão. Se para Rawls, o construtivismo moral representa a
capacidade de seres racionais, livres e iguais, de produzirem direitos e normas
para o convívio social e, em Nozick, mesmo a livre iniciativa de associação
entre todos não legitima tal competência, seria possível dizer que Rawls é
liberal clássico, enquanto Nozick seria um libertário ou anarcocapitalista? Ter clareza sobre a posição que Nozick assume no debate político, nos
ajudará a entender, mais a frente, a crítica que será feita ao tratarmos da
questão da justiça distributiva, e as possíveis contradições nozickiana acerca
em sua concepção de Estado.
Para teoria rawlsiana de “justiça como equidade”, é imprescindível que os
princípios norteadores sejam escolhidos a partir de uma posição original. De
acordo com Rawls, somente a partir de uma situação inicial adequada é possível
chegar a princípios equitativos para o pacto social. A posição original, em TJ, apresenta-se como
um recurso procedimental cujo objetivo é garantir que o acordo seja realizado
em condições equitativas, por cidadãos livres e iguais, sem influência de
concepções particulares de bem. De acordo com Barry, a
construção da posição original visa afiançar que as partes não adotem uma
perspectiva parcial. Isto se realiza, se de fato os pactuantes não contarem com
nenhuma informação acerca de suas próprias características distintivas (BARRY,
1997, p. 290).
Na primeira parte, Nozick tenta legitimar a
existência de um Estado, rebatendo as alegações anarco-individualistas de que o
Estado seria, por natureza, uma instituição imoral. Ele reconhece que a
justificação lockeana do Estado não serve como argumento contra esse tipo de
anarquismo, o qual defende alternativas não-estatais para lidar com os problemas sociais. Nozick trata da tese anarquista de que o monopólio do uso da força e a
tarefa de proteção de todos que vivem no seu território implica necessariamente
na violação, por parte do Estado, dos direitos individuais inatos, ou seja, se
ocupa em demonstrar a legitimidade moral do Estado. Nozick sustenta, na
primeira parte de AEU, que o Estado surgiria da anarquia, mesmo que ninguém
tivesse a intenção de criá-lo, por meio de um processo que não violaria os
direitos dos indivíduos, o que o tornaria imoral. Nozick afirma. “contra essa
tese, argumento que um Estado surgiria da anarquia (do modo como a representa o
estado de natureza de Locke), mesmo ninguém tivesse tal intenção ou tentasse criá-lo
por meio de um processo que não violaria os direitos de ninguém” (NOZICK. 2011,
XII).