Este ensaio pretende oferecer ao aluno
uma panorâmica geral e introdutória do modo como os filósofos têm encarado as
ciências da natureza ao longo da história, e apresentar simultaneamente alguns
elementos básicos da própria história do desenvolvimento científico. Nestas
páginas encontram-se alguns elementos da história da ciência, mas, sobretudo,
da história da filosofia da ciência, assim como elementos de história das idéias
em geral e de história da filosofia em particular; isto é, tratam-se em grande
parte de uma panorâmica do modo como os filósofos têm encarado a ciência ao
longo do tempo, e não tanto uma descrição, ainda que geral, do desenvolvimento
da própria ciência. Os desenvolvimentos científicos surgem apenas como pano de
fundo. Procurar ver como ao longo da história a pergunta filosófica “O que é a
ciência da natureza?” seria respondida, pareceu-me uma boa maneira de orientar
este texto. Estas páginas incluem como ilustração das idéias aqui apresentadas,
algumas passagens dos filósofos e cientistas referidos. Apesar de essas
passagens serem escolhidas a pensar na facilidade de compreensão por parte dos
alunos, todo o texto pode ser lido passando por cima delas sem que algo de
essencial se perca.
Apesar de o termo
“ciência” ser muito abrangente, neste texto iremos, sobretudo centrar a nossa
atenção nas ciências da natureza. Pelo fato de as ciências da natureza, e em
particular física e a astronomia, se terem desenvolvido mais cedo do que as
ciências sociais exerceram e continuam a exercer uma influência assinalável no
modo como os filósofos encaram a ciência acontecendo até muitas vezes que eles
usam o termo “ciência” como abreviatura de “física”. Ao longo do texto irei
muitas vezes usar o termo “ciência” para falar das ciências da natureza; quando
falar das ciências formais como a geometria ou a matemática em geral, será
suficientemente claro que já não estou a falar de ciências da natureza.
1.
OS GREGOS
Mitos
e deuses
Quando surgiu a
ciência? Esta parece ser uma pergunta simples. Contudo, tem freqüentemente dado
origem a longas discussões. Discussões que acabam quase sempre por se deslocar
para outra pergunta mais básica: o que é a ciência? Mais
básica, pois a resposta para aquela depende da solução encontrada para esta. Ora,
o termo “ciência” nem sempre foi entendido da mesma maneira e ainda hoje as
opiniões acerca do que deve ou não ser considerado como científico continuam
divididas. Uma definição rigorosa e consensual de ciência é, pois, algo difícil
de estabelecer. Mas isso não nos deve impedir de avançar. Assim, a melhor
maneira de começar talvez seja a de correr o risco de propor uma definição de
ciência que, apesar de imprecisa, nos possa servir como ponto de partida, mesmo
que venha depois a ser corrigida: a ciência da natureza é o estudo
sistemático e racional, baseado em métodos adequados de prova, da natureza e do
seu funcionamento. Muitas das perguntas mais elementares que os seres
humanos colocam a si próprios desde que são seres humanos são perguntas que
podem dar origem a estudos científicos. Eis alguns exemplos dessas
perguntas: Porque é que chove? O que é o trovão? De onde vem o
relâmpago? Por que razão crescem as ervas? Por que razão existem os montes? Por
que razão tenho fome? Por que razão morrem os meus semelhantes? Porque é que
cai a noite e a seguir vem o dia de novo? O que são as estrelas? Por que razão
voam os pássaros?...
Mas estas
perguntas podem dar origem também a outro tipo de respostas que não as
científicas; podem dar origem a respostas de caráter religioso e mítico. Essas
respostas têm a característica de não se basearem nos métodos mais adequados e
de não serem o produto de estudos sistemáticos. Uma resposta mítica ou
religiosa apela à vontade de um Deus ou de deuses e conta uma história da
origem do universo. Essa resposta não se baseia em estudos sistemáticos da
natureza, mas antes na observação diária não sistemática; e não são estudos
racionais dado que não encorajam a crítica, mas antes a aceitação religiosa.
Isto não quer dizer que as respostas míticas e religiosas não tivessem qualquer
valor. Por exemplo, é óbvio que numa altura em que a ciência, com os seus
métodos racionais de prova, ainda não estava desenvolvida, as explicações
míticas e religiosas eram pelo menos uma maneira de responder à curiosidade natural
dos seres humanos. Além disso, as explicações míticas e religiosas de um dado
povo dão a esse povo uma importância central na ordem das coisas. E têm ainda
outra característica importante: essas explicações constituem muitas vezes
códigos de conduta moral, determinando de uma forma integrada com a origem
mítica do universo, o que se deve e o que não se deve fazer. As explicações
míticas e religiosas foram antepassados da ciência moderna, não por darem
importância central aos seres humanos na ordem das coisas nem por determinarem
códigos de conduta baseados na ordem cósmica, mas por ao mesmo tempo oferecerem
explicações de alguns fenômenos naturais — apesar de essas explicações não se
basearem em métodos adequados de prova nem na observação sistemática da natureza.
OS
PRIMEIROS FILÓSOFOS-CIENTISTAS
A ciência da
natureza é diferente do mito e da religião. A ciência baseia-se em observações
sistemáticas, é um estudo racional e usa métodos adequados de prova. Como é
natural, os primeiros passos em direção à ciência não revelam ainda todas as
características da ciência — revelam apenas algumas delas. O primeiro, e
tímido, passo na direção da ciência só foi dado no início do século VI a. C. na
cidade grega de Mileto, por aquele que é apontado como o primeiro filósofo,
Tales de Mileto. Tales de Mileto acreditava em deuses. Só que a resposta que
ele dá à pergunta acerca da origem ou princípio de tudo o que vemos no mundo já
não é mítica; já não se baseia em entidades sobrenaturais.. Dizia Tales que o
princípio de todas as coisas era algo que por todos podia ser diretamente
observado na natureza: a água. Tendo observado que a água tudo fazia crescer e
viver, enquanto que a sua falta levava os seres a secar e morrer; tendo,
talvez, reparado que na natureza há mais água do que terra e que grande parte
do próprio corpo humano era formado por água; verificando que esse elemento se
podia encontrar em diferentes estados, o líquido, o sólido e o gasoso, foi
assim levado a concluir que tudo surgiu a partir da água. A explicação de Tales
ainda não é científica; mas também já não é inteiramente mítica. Têm
características da ciência e características do mito. Não é baseada na
observação sistemática do mundo, mas também não se baseia em entidades míticas.
Não recorre a métodos adequados de prova, mas também não recorre à autoridade
religiosa e mítica.
Este último
aspecto é muito importante. Consta que Tales desafiava aqueles que conheciam as
suas idéias a demonstrar que não tinha razão. Esta é uma
característica da ciência e da filosofia que se opõe ao mito e à religião. A
vontade de discutir racionalmente idéias, ao invés de nos limitarmos a
aceitá-las, é um elemento sem o qual a ciência não se poderia ter desenvolvido.
Uma das vantagens da discussão aberta de idéias é que os defeitos das nossas
idéias são criticamente examinados e trazidos à luz do dia por outras pessoas.
Foi talvez por isso que outros pensadores da mesma região surgiram apresentando
diferentes teorias e, deste modo, se iniciou uma tradição que se foi gradualmente
afastando das concepções míticas anteriores. Assim apareceram na Grécia, entre
outros, Anaximandro (século VI a. C.), Heráclito (século VI/V a. C.), Pitágoras
(século VI a. C.), Parmênides (século VI/V a. C.) e Demócrito (século V/IV a.
C.). Este último viria mesmo a defender que tudo quanto existia era composto de
pequeníssimas partículas indivisíveis (atomoi), unidas entre si de
diferentes formas, e que na realidade nada mais havia do que átomos e o vazio
onde eles se deslocavam. Foi o primeiro grande filósofo naturalista, que achava
que não havia deuses e que a natureza tinha as suas próprias leis.
As ciências da
natureza estavam num estado primitivo; pouco mais eram do que especulações
baseadas na observação avulsa. Mas as ciências matemáticas começaram também
desde cedo a desenvolver-se, e apresentaram desde o início muitos mais
resultados do que as ciências da natureza. Pitágoras, por exemplo, descobriu
vários resultados matemáticos importantes, e o nome dele ainda está associado
ao teorema de Pitágoras da geometria (apesar de não se saber se terá sido
realmente ele a descobrir este teorema, se um discípulo da sua escola). A
escola pitagórica era profundamente mística; atribuía aos números e às suas
relações um significado mítico e religioso. Mas os seus estudos matemáticos
eram de valor, o que mostra mais uma vez como a ciência e a religião estavam
misturadas nos primeiros tempos. Afinal, a sede de conhecimento que leva os
seres humanos a fazer ciências, religiões, artes e filosofia é a mesma.
O maior desenvolvimento
das ciências matemáticas teve repercussões importantíssimas para o
desenvolvimento da ciência, para a filosofia da ciência e para a filosofia em
geral. Os resultados matemáticos tinham uma característica muito diferente das
especulações sobre a origem do universo e de todas as coisas. Ao passo que
havia várias idéias diferentes quanto à origem das coisas, os resultados
matemáticos eram consensuais. Eram consensuais porque os métodos de prova
usados eram poderosos; dada a demonstração matemática de um resultado, era
praticamente impossível recusá-lo. A matemática tornou-se assim um modelo da
certeza. Mas este modelo não é apropriado para o estudo da natureza, pois a
natureza depende crucialmente da observação. Além disso, não se pode aplicar a
matemática à natureza se não tivermos à nossa disposição instrumentos precisos
de quantificação, como o termômetro ou o cronômetro. Assim, o sentimento de
alguns filósofos era (e por vezes ainda é) o de que só o domínio da matemática
era verdadeiramente “científico” e que só a matemática podia oferecer realmente
a certeza. Só Galileu e Newton, já no século XVII, viriam a mostrar que a
matemática se pode aplicar à natureza e que as ciências da natureza têm de se
basear noutro tipo de observação diferente da observação que até aí se fazia.
PLATÃO
E ARISTÓTELES
Uma das
preocupações de Platão (428-348 a.C.) foi distinguir a verdadeira ciência e o
verdadeiro conhecimento da mera opinião ou crença. Um dos problemas que
atormentaram os filósofos gregos em geral e Platão em particular, foi o
problema do fluxo da natureza. Na natureza verificamos que muitas coisas estão
em mudança constante: as estações sucedem-se, as sementes transformam-se em
árvores, os planetas e estrelas percorrem o céu noturno. Mas como poderemos nós
ter a esperança de conseguir explicar os fenômenos naturais, se eles estão em
permanente mudança? Para os gregos, isto representava um problema por alguns
dos motivos que já vimos: não tinham instrumentos para medir de forma exata,
por exemplo, a velocidade; e assim a matemática, que constituía o modelo básico
de pensamento científico, era inútil para estudar a natureza. A matemática
parecia aplicar-se apenas a domínios estáticos e eternos. Como o mundo estava
em constante mudança, parecia a alguns filósofos que o mundo não poderia jamais
ser objeto de conhecimento científico.
Era essa a idéia
de Platão. Este filósofo recusava a realidade do mundo dos sentidos; toda a
mudança que observamos diariamente era apenas ilusão, reflexos pálidos de uma
realidade supra-sensível que poderia ser verdadeiramente conhecida. E a
geometria, o ramo da matemática mais desenvolvida do seu tempo, era a ciência
fundamental para conhecer o domínio supra-sensível. Para Platão, só podíamos
ter conhecimento do domínio supra-sensível, a que ele chamou o domínio das
Idéias ou Formas; do mundo sensível não podíamos senão ter opiniões, também
elas em constante fluxo. O domínio do sensível era, para Platão, uma forma de
opinião inferior e instável que nunca nos levaria à verdade universal, eterna e
imutável, já que se a mesma coisa fosse verdadeira num momento e falsa no
momento seguinte, então não poderia ser conhecida. Podemos ver a distinção
entre os dois mundos, que levaria à distinção entre ciência e opinião, na
seguinte passagem de um dos seus diálogos:
Há
que admitir que exista uma primeira realidade: o que tem uma forma imutável, o
que de nenhuma maneira nasce nem perece, o que jamais admite em si qualquer
elemento vindo de outra parte, o que nunca se transforma noutra coisa, o que
não é perceptível nem pela vista, nem por outro sentido, o que só o
entendimento pode contemplar. Há uma segunda realidade que tem o mesmo nome: é
semelhante à primeira, mas é acessível à experiência dos sentidos, é
engendrada, está sempre em movimento, nasce num lugar determinado para em
seguida desaparecer; é acessível à opinião unida à sensação. [Platão- Timeu].
Conhecer as idéias seria o mesmo que
conhecer a verdade última, já que elas seriam os modelos ou causas dos objetos
sensíveis. Como tal, só se poderia falar de ciência acerca das idéias, sendo
que estas não residiam nas coisas. Procurar a razão de ser das coisas obrigava
a ir para além delas; obrigava a ascender a outra realidade distinta e
superior. A ciência, para Platão não era, pois, uma ciência acerca dos objetos
que nos rodeiam e que podemos observar com os nossos sentidos. Neste aspecto
fundamental é que o principal discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.),
viria a discordar do mestre. Aristóteles não aceitou que a realidade captada
pelos nossos sentidos fosse apenas um mar de aparências sobre as quais nenhum
verdadeiro conhecimento se pudesse constituir. Bem pelo contrário, para ele não
havia conhecimento sem a intervenção dos sentidos. A ciência, para ele, teria
de ser o conhecimento dos objetos da natureza que nos rodeia.
É verdade que os
sentidos só nos davam o particular e Aristóteles pensava que não há ciência
senão do universal. Mas, para ele, e ao contrário do seu mestre, o universal
inferia-se do particular. Aristóteles achava que, para se chegar ao
conhecimento, nos devíamos virar para a única realidade existente, aquela que
os sentidos nos apresentavam. Sendo assim, o que tínhamos de fazer consistia em
partir da observação dos casos particulares do mesmo tipo e, pondo de parte as
características próprias de cada um (por um processo de abstração), procurar o
elemento que todos eles tinham em comum (o universal). Por exemplo, todas as
árvores são diferentes umas das outras, mas, apesar das suas diferenças, todas
parecem ter algo em comum. Só que não poderíamos saber o que elas têm em comum
se não observássemos cada uma em particular, ou pelo menos um elevado número
delas.
Ao processo que permite chegar ao universal
através do particular chama-se por vezes “indução”. A indução é, pois, o método
correto para chegar à ciência, tal como escreveu Aristóteles: É evidente também
que a perda de um sentido acarreta necessariamente o desaparecimento de uma
ciência, que se torna impossível de adquirir. Só aprendemos, com efeito, por
indução ou por demonstração. Ora a demonstração faz-se a partir de princípios
universais, e a indução a partir de casos particulares. Mas é impossível
adquirir o conhecimento dos universais a não ser pela indução, visto que até os
chamados resultados da abstração não se podem tornar acessíveis a não ser pela
indução. (“...) Mas induzir é impossível para quem não tem a sensação: porque é
nos casos particulares que se aplica a sensação; e para estes não pode haver
ciência, visto que não se pode tirá-la de universais sem indução nem obtê-la
por indução sem a sensação.”
Aristóteles, Segundos Analíticos: Aristóteles
representa um avanço importante para a história da ciência. Além de ter fundado
várias disciplinas científicas (como a taxionomia biológica, a cosmologia, a
meteorologia, a dinâmica e a hidrostática), Aristóteles deu um passo mais na
direção da ciência tal como hoje a conhecemos: pela primeira vez encarou a
observação da natureza de um ponto de vista mais sistemático. Ao passo que para
Platão a verdadeira ciência se fazia na contemplação dos universais, descurando
a observação da natureza que é fundamental na ciência, Aristóteles dava grande
importância à observação. Aristóteles desenvolveu teorias engenhosas sobre
muitas áreas da ciência e da filosofia. A própria filosofia da ciência foi pela
primeira vez estudada com algum rigor por ele. Aristóteles achava que havia
vários tipos de explicações, que correspondiam a vários tipos de causas.
Um
desses tipos de causas e de explicações era fundamental, segundo Aristóteles: a
explicação teleológica ou finalista. Para Aristóteles, todas as coisas tendiam
naturalmente para um fim (a palavra portuguesa “teleologia” deriva da palavra
grega para fim: telos), e era esta concepção
teleológica da realidade que explicava a natureza de todos os seres. Esta
concepção da ciência como algo que teria de ser fundamentalmente teleológica
iria perdurar durante muitos séculos, e constituir até um obstáculo importante
ao desenvolvimento da ciência. Ainda hoje muitas pessoas pensam que a ciência
contemporânea descreve o modo como os fenômenos da natureza ocorrem, mas que
não explica o porquê desses fenômenos; isto é uma idéia errada, que resulta
ainda da idéia aristotélica de que só as explicações finalistas são verdadeiras
explicações. Devido a um conjunto de fatores, a Grécia não voltou a ter
pensadores com a dimensão de Platão e Aristóteles. Mesmo assim apareceram
ainda, no século III a. C., alguns contributos para a ciência, tais
como os Elementos de Geometria de Euclides, as
descobertas de Arquimedes na Física e, já no século II, Ptolomeu na
astronomia.