Conhecida como Pantheismusstreit (Querela do Panteísmo), uma primeira etapa da
recepção de Spinoza teve início com a mobilização,
feita por Jacobi a Mendelssohn,
de que o escritor e dramaturgo Lessing, pouco antes de morrer, havia-lhe
confidenciado que se convertera secretamente à doutrina de Spinoza. Jacobi,
inconformado com a conversão de Lessing à doutrina spinozista, publicou em 1783
a obra Sobre a doutrina de Spinoza em
cartas a senhor Moses Mendelssohn
(1785), como resultado da troca de correspondência entre Jacobi e
Mendelssohn. Em tal obra, Jacobi procura mostrar-se um intérprete competente da
filosofia spinozista, rejeitando em parte algumas conclusões, porém admirando
o rigor dedutivo e a elevação da filosofia spinozista.
Mas, assegura que o caráter metódico e sistemático do spinozismo o torna,
quanto à forma, a mais completa e consequente forma do racionalismo, e, quanto
ao conteúdo, consequentemente, “um verdadeiro ateísmo” (JACOBI, 1996, p. 149).
Mendelssohn,
diferentemente da interpretação de Jacobi, procura defender o spinozismo do
princípio fundamental de identidade entre Deus e natureza, o que lhe garantiria
a refutação da acusação de ateísmo a Spinoza, e também a Lessing. É visto que a
polêmica orientava-se pela discussão em torno das relações entre o spinozismo e
o panteísmo, mas desenvolveu-se na direção de um problema mais amplo acerca das
relações entre o pensamento filosófico e a religião, entre razão e fé, em que o
interesse especulativo se mesclava com interesses de ordem existencial e ética.
Essa polêmica divulgação da filosofia de Spinoza deu origem a várias obras e
artigos que buscavam desprezar completamente ou contribuir para uma pretensa
compreensão exata do significado da doutrina spinozista. Dessas discussões
participaram direta ou indiretamente filósofos, teólogos e literatos,
representantes tanto do último iluminismo como do nascente Romantismo, tais
como Hamman, Schelling, Hölderlin, Novalis e outros.
No que se
refere à polêmica da doutrina spinozista, o ponto da partida da crítica de
Jacobi está na questão do ateísmo e não do panteísmo. Segundo Jacobi, chamar o spinozismo
de panteísmo é incorreto, já que qualquer doutrina que não se enquadre no Deus
cristão é, por consequência, um ateísmo, fazendo com que não exista um
meio-termo; e afirmando que existem as doutrinas teístas e as ateístas, e nada
mais entre elas, o que nos leva a afirmar novamente o caráter ateu e não
panteísta ao qual Jacobi acusa à filosofia spinozista: “prometi iluminar ainda
mais claramente [...] a impossibilidade de um sistema intermediário entre o
teísmo e o spinozismo, e a monstruosidade de sua mescla” (JACOBI, 1996, p.
207).
Na obra Sobre
a Doutrina de Spinoza Jacobi
afirma que o “spinozismo é ateísmo” (JACOBI, 1996, p. 149), apresentando
suas críticas iniciais ao fatalismo e consequentemente ao ateísmo. A polêmica em torno do Deus Spinozista, Deus sive natura, e o Deus Jacobiano,
entendido como causa transcendente, desenvolvem-se a partir da posição de
Jacobi segundo a qual o determinismo não se distingue do fatalismo e que,
portanto, fatalismo é ateísmo, pois estas duas doutrinas (determinismo -
fatalismo) negam a liberdade. Com isso, Jacobi se vê na necessidade de admitir
a coerência argumentativa do spinozismo, inclusive, de pôr à prova sua adesão
ao fatalismo e ateísmo, visto que, para Jacobi, “uma coisa teria de se seguir
da outra” (JACOBI, 1996, p.152), ou seja, determinismo implica em
fatalismo.
O
estranhamento de Jacobi com a doutrina de Spinoza é visto de forma ainda mais
evidente em sua carta a Fichte quando afirma que a Doutrina da Ciência se constitui um “spinozismo invertido” (JACOBI, 1996, p. 486). Tal estranhamento é
visto de forma clara nas cartas de Jacobi a Mendelssohn já citada, em que
Jacobi procura apresentar suas concepções filosóficas do sentimento e de fé em
oposição às reivindicações da razão pura, e a defesa da existência de um Deus
pessoal. De forma semelhante,
Mendelssohn também permaneceu até a morte um defensor das ideias do Deus
pessoal e da causalidade final.
Entretanto, as discussões entre Jacobi e
Mendelssohn logo adquirem ares litigiosos, uma vez que a discordância quanto à
doutrina spinozista da parte de Mendelssohn transcorre sobre a condição de
escapar das ameaças do fatalismo. Ora, Mendelssohn jamais poderia conceder a
Jacobi que o spinozismo é o racionalismo em sua forma mais bem acabada. Pois
isso seria o mesmo que dar-se por vencido no campo de batalha que ele enxergava
como sendo o decisivo. Assim, Mendelssohn, em diálogo com Jacobi, diz:
[...] deixo também de lado a saída honrosa, por vós
encampada sob a bandeira da fé. Ela condiz perfeitamente com o espírito de
vossa religião, que vos inflige o dever de abater as dúvidas com a fé. O
filósofo cristão, pode como passa tempo, troçar do naturalista, dirigir-lhe
sutilezas que, como fogos-fátuos, o atiram de um canto a outro, escapando
sempre às suas presas mais seguras. Minha religião ignora o dever de suprimir
tais dúvidas de outro modo que não por meio de princípios racionais, e não
ordena a fé em verdades eternas. Possuo, assim, uma razão a mais para buscar a
convicção (MENDENSSOHN, 1971, p. 115-116).
Oposto a Mendelssohn, Jacobi afirma que a doutrina Spinozista é determinista e
fatalista e, como consequência, exclui a ideia de um Deus entendido como causa
transcendente. A
oposição de Jacobi à filosofia de Spinoza passa pela teoria dos modos finitos,
que para Spinoza seria a explicação da relação entre Deus e as substâncias. “Este
último é especialmente importante. Uma filosofia com a de Spinoza, segundo
Jacobi, não salvaguarda devidamente a autonomia das substâncias individuais,
pois reduz a simples efeitos do mecanicismo, num mundo sem Deus” (MORUJÃO,
2007, p. 39). Desta forma, Jacobi alinhou-se com aqueles que defendiam que
Spinoza era, de fato, um ateu que reduziu Deus a uma lógica, matemática e
mecanicista da natureza. Em grande parte, por instigação de Jacobi, produziu-se
uma extensa discussão sobre Spinoza, visto que Jacobi viu na doutrina spinozista
a forma mais acabada do racionalismo cartesiano, como afirma Beckenkamp:
[...] o problema desencadeado através da potencialidade
da razão como único meio de conhecimento na crítica de Jacobi começa em
Descartes através da proposta filosófica do racionalismo, passando pela
filosofia de Spinoza, pois em termos bem gerais, o spinozismo é o sistema que
elevou a razão ao máximo potencial e mostrou ao pensamento humano o resultado
de tal profundidade. Jacobi [...] apresenta, portanto, a filosofia de Spinoza,
e isto de tal maneira que o spinozismo aparece como a forma mais consequente do
racionalismo (BECKENKAMP, 2004, p.43).
Como se vê, Jacobi
aceita pagar o preço representado pela distância entre sua própria convicção
pessoal e o alcance demonstrativo inigualável do spinozismo. Convicto de sua
posição, ainda sobre a doutrina de Spinoza, é do
seguinte modo que Jacobi afirma-se:
[...] querer
descobrir as condições do incondicionado, querer encontrar uma possibilidade para o absolutamente necessário, querer construí-lo, para o poder compreender
parece ter de aparecer, de imediato, como um empreendimento insensato. E,
todavia, é precisamente isto que empreendemos quando nos esforçamos por
atribuir à natureza uma existência meramente
natural, quer dizer, compreensível por nós e trazer à luz do dia o
mecanismo do princípio do mecanismo (JACOBI,
1996, p.115).
Jacobi
traz à tona o vício do absolutismo da razão, que na sua configuração da
realidade separa o ser do real, exprimindo assim, inconscientemente, a sua
força niilista. Segundo Iacovacci, “essa força do niilismo é parte integrante
da subjetividade racional” (IACOVACCI, 1992, p, 23. Neste sentido “a pura razão
é artificial, uma percepção niilista da realidade” (IVALDO, 1995, p. 53). A consequencia
desta “perda da realidade” será a perda do sentido, uma vez que o destino do
sujeito, demasiado ocupado com questões especulativas, tornou-se míope no que
diz respeito ao “absoluto”. Aqui se coloca, em nome da razão, o irracional, uma
vez que a liberdade vem reduzida a um processo de desconstrução. O resultado
será aquela experiência niilista que toma conta da existência, esvaziando-a de
fundamento. Com isso, ao eu racional preside uma erosão dos valores,
desembocando supostamente em uma crise da metafísica, perda do sentido, ateísmo
e niilismo.
Como já
se denota, a posição de Jacobi apresenta uma oposição ao spinozismo, visto que,
para Jacobi, a “razão pura só percebe a si mesma” (JACOBI, 1996. p.491). De
acordo com Morujão, “o absolutismo da razão consiste na atividade de deduzir
conclusões a partir de premissas de modo que avança ou retrocede
indefinitivamente, sem que algo na cadeia dos raciocínios a liberte do vazio em
que trabalha” (MORUJÃO, 2007, p. 39).
CONCLUSÃO
Qualquer
estudioso de Espinosa, entenderá a importância desses debates, tão bem
reconstruídos pelo poeta e filósofo Heine. Segundo Haine, Jacobi entornou
novamente uma filosofia que se mostrava periférica e que elevou o spinozismo a
um grau tão alto que induziu Heine em sua época a proferir a clássica
afirmação: “O panteísmo é a religião clandestina da Alemanha” (HEINE, 2010,
p.110). Na crítica de Jacobi a Spinoza tem-se que a verdadeira concepção de
Deus só pode ser alcançada pela fé; logo, a ideia de um Deus que é alcançada
por meio da razão, mostra que tal meio apreende e apresenta um Deus como uma
ideia débil, na medida em que nos dá uma evidência muito fraca de Deus, e não
condiz com Deus em si; logo, é um ateísmo, e “O Deus do entendimento, assim, é
um nada. Com isso, o Deus de Spinoza é um Deus
morto e, portanto, o spinozismo é um ateísmo” (BERLANGA, 1989, p. 472).
Jacobi apresenta uma refutação sobre a ideia de Deus que possa ser alcançada
pela razão, pois a racionalidade excessiva impõe a ideia de um mundo sem Deus.
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“Em 1785, Jacobi conseguiu mobilizar a
intelectualidade alemã, com a publicação de seu livro Sobre a doutrina de Spinoza em carta ao senhor Moses Mendenssohn. A
reação foi particularmente forte no campo dos defensores do Esclarecimento, em
que se encontrava inclusive o destinatário das cartas, o filósofo berlinense Moses Mendelssohn. Em sua suas cartas,
Jacobi comunicava conversações tidas
com Lessing pouco antes de sua morte
(1781), nas quais esse teria manifestado sua simpatia com
o sistema espinozista, repudiado em geral como sinônimo de panteísmo quando
não de ateísmo. Os representantes do Esclarecimento viam envolvidos, desta
maneira, um de seus maiores aliados com uma filosofia geralmente condenada. O
livro de Jacobi tinha de parecer, assim para muitos, uma verdadeira acusação
pública de Lessing. A reação foi, naturalmente, proporcional à ousadia,
contribuindo para enorme sucesso do livro. Saía, assim, já em 1789, uma segunda
edição, fortemente alterada por Jacobi, trazendo inclusive uma série de apêndice com as quais pretendia mostrar o nexo de suas idéias com sistemas filosóficos
passados” (BECKENKAMP, 2004, p. 41).
“Amo Spinoza porque, mais do que qualquer outro filósofo, me convenceu
perfeitamente de que certas coisas não podem se explicar; diante delas, não se
deve fechar os olhos, é preciso tomá-las como as encontramos. Não possuo ideia
mais intimamente enraizada em mim do que aquela das causas finais, nem
convicção mais viva do que a de que faço o que penso, em vez de que deveria
apenas pensar o que faço. [...] Certo, devo então admitir uma fonte do
pensamento e da ação que permanece inteiramente inexplicável para mim”(JACOBI,
1996, p.165).
“Em termos bem gerais, o
spinozismo é o sistema que elevou a razão ao máximo potencial e mostrou ao
pensamento humano o resultado de tal profundidade [...] Segundo o mesmo, com
exceção de Spinoza, todos os outros filósofos de métodos racionalistas como
Descartes, Leibniz, Wolff entre outros, nada mais fizeram que uma tentativa de
se desviar deste fim necessário de tais sistemas, contudo, por não admitir esse
fim, deixaram seus sistemas incompletos ou precisaram se desviar para caminhos
sem volta. O elogio a Spinoza acontece no aspecto de que, para Jacobi, o
filósofo de Amsterdã foi o único com coragem para admitir e construir tal
sistema, e elevá-lo como preceito até as últimas conseqüências, ou seja,
segundo Jacobi, o spinozismo é o único sistema racionalista que chegou a sua
completude, sendo esta a formulação de um sistema necessariamente ateu e que
nega a liberdade”(MOREAU, 2004, p. 12).